segunda-feira, 10 de maio de 2010

I - Abril de 2004

                                                       

     Um dia qualquer, de um mês qualquer de 1983.
     Eu estava com dezessete anos, fazendo o terceiro ano científico e fui a uma loja de roupas, da amiga da minha mãe, no bairro Sion. Era mesmo um dia qualquer, nada de especial por fazer, a não ser comprar algumas roupas para mim. Escolhi algumas peças e depois de colocá-las numa sacola, a vendedora me mandou assinar uma nota promissória.
     Quando morávamos no interior, meus irmãos e eu só comprávamos assim, mediante assinatura de uma nota, mais tarde meu pai ou minha mãe fazia o pagamento. Mas, naquele dia, meu coração bateu com mais força, socou dentro de mim, como se eu tivesse acabado de levar um grande susto. É, é isso: posso resumir tudo em um grande susto. Eu olhei para a folha de papel como se olhasse para um bicho muito ameaçador. Senti medo ao pegar a caneta e encostar o pulso no papel sobre a mesa. Comecei a escrever meu nome bem devagar; no segundo sobrenome, eu queria sair correndo, largando tudo para trás; no terceiro e último, eu não tinha mais controle algum.
     Para a moça estava tudo bem, minha assinatura deveria ser mesmo aquele garrancho. Tremi muito. Por um momento rápido, que para mim, com certeza, foi muito lento, respirei o ar da incredulidade. Parecia tudo irreal, como num pesadelo em que a gente tenta sair dele, mas não consegue. Porque, de repente, minha vida se resumiu naqueles poucos segundos. Pareciam eternos. Porque, de repente, havia alguém estranho me olhando escrever. Fui para casa pasma. Eu havia levado um susto e agido de forma culpada. Hoje, percebo que sempre houve culpa. Culpa ao assinar.
     De volta para casa, dentro do ônibus, eu pensava na razão daquele meu ato medroso e tremido. Só que passou e deixei de me lembrar daquele dia. Porém, não me esqueci.
     Fiz o vestibular, passei, e, no dia da matrícula, na PUC, pensei se teria aquilo novamente, mas não tive.
     Voltei a ter "aquilo", após seis meses de faculdade, quando completei dezoito anos e tirei o CPF e o título de eleitor. A mesma coisa: tremor intenso nas mãos, um forte calor subindo e descendo pela cabeça, uma enorme vontade de sair correndo do local. Sumir. Evaporar. Me vi na necessidade de dar explicações, de me justificar perante o atendente do outro lado do balcão. Impotência. Vergonha. Frustração.
     Não importava a forma com a qual a letra saía, apesar de que, na maioria das vezes, eu tinha que ouvir o comentário do outro lado: "não confere com a assinatura da carteira de identidade." Não importava porque acabava ficando daquele jeito mesmo, eu mentia dizendo estar passando mal e "se você quiser, volto outro dia", com a melhor cara que eu podia fazer, simpática e inocente.
     Importava sim, é claro! Eu não tinha aquela letra horrorosa e não gostava da tempestade física pela qual passava. Será que não dava para ser como deveria ser com todo mundo? Normalmente? Como tomar um refrigerante no bar da esquina. Um ato tão bobo. Comum. Nada de excepcional. Era só preencher um papel e assinar. Apenas isso! E eu não conseguia. O meu dia acabava ali. Eu ficava péssima. Me sentia ridícula. Uma estudante de Direito que se comportava como uma semianalfabeta. Para que tantos livros lidos, tantas horas de estudo? Para quê? Daí, a coisa degringolou. A bola de neve começou a avolumar. Eu já não queria mais passar por aquela vergonha e então comecei a evitar todas as situações que me deixavam daquele jeito: o berço da doença!
     O silêncio foi absoluto. Jamais contei a alguém o que acontecia comigo. Guardar só para mim o problema foi a causa agravante da minha doença. Pensei muitas vezes em comentar com uma amiga, ou com a minha mãe, um namorado, mas eu não conseguia.
     A primeira pessoa que ouviu a minha história foi Dr. J, quando eu havia acabado de completar vinte e nove anos. Muito tempo, muita idade. Muita desilusão, muita ignorância. Muito sofrimento. Pouca realização. Pouca felicidade.

4 comentários:

  1. Vinte e Nove anos. É o quanto eu tenho. Eu achava tarde, não tenho nada: uma faculdade e meia, nenhuma carreira, nada! Mas há tempo...
    Abraços,
    Carina

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  2. Eu entendo. Eu acredito muito no tempo, na rotação da Terra. Mesmo que você gire em torno de um mesmo lugar, você está em movimento e isso basta. E você nunca é a mesma, apesar das semelhanças...

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  3. Sempre é tempo, Suzana...SEMPRE É.

    beijos,

    Bia

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  4. Eu acho que é uma metáfora. Sei que há pessoas que gostam dos movimentos dos ponteiros, enquanto outras simplesmente odeiam. Eu sou indiferente. Sei que eles existem e não me ocupo deles.
    Lembro-me que quando eu tinha uns treze anos, comecei a ter medo de sair as ruas. Todas as pessoas me incomodavam de forma sobrenatural. Olhava para elas e via em seus movimentos (qualquer que fosse) um tom a ameaçador. Mesmo que fossem conhecidas. Durou pouco tempo, mas o tempo que durou foi dificil. Eu não queria sair de casa, nem mesmo ir para o colégio. Queria apenas ficar em casa. Mas me obrigava a fazer tudo que temia, como forma de enfrentar aquilo que era insensato demais pra mim. Esse foi o meu silêncio, só que diferentemente de você nunca disse isso a ninguém e agora estou cá a falar de algo que parecia perdido. rs
    bacio

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