sexta-feira, 7 de maio de 2010

1. Antes, uma carta para Dr. J.


      Abril de 2010

     Eu lhe escrevo para dizer que fui capaz de abrir a boca e sorver a vida num fôlego só, num movimento único e portanto intenso e isso foi porque, um dia, eu bati à sua porta. Os dois anos passados sozinha com meus dois filhos no Brasil me deram a certeza absoluta da minha total capacidade de ser plena. Você me perguntou algo sobre como ia a minha vida sem o R. Não me lembro bem das palavras, mas lembro ter respondido que já havia sentido por ele todos os sentimentos possíveis. Eu senti amor, orgulho, desprezo, raiva, indiferença, ódio, paixão, carinho, em ventos que iam e vinham, como se eu balançasse numa gangorra, e, na maioria das vezes, ficasse mais tempo lá, no alto, entre o final da subida e o início da descida. A nossa separação e a de nós mesmos foi a causa de tudo. Virei uma cebola e a vida foi me descascando lentamente, camadas que saíam, caíam... eu querendo ou não.
     Mas não posso me dispor de nada, nem na base de troca. Foi a minha vida! Em 2007 e 2008, eu vivi todas as emoções, inclusive as inexplicáveis, ou inviáveis. Suportei o improvável em meio às tarefas comuns, banco, supermercado, reunião de pais e professores, pneu furado, bolsa se rompendo ao nascer do dia, doenças, decisões. Solidão. Solidão. Solidão. Muitos desencontros, alguns poucos encontros. Eu nascia e morria a cada casca desprendida. O conforto e o consolo eram recebidos num processo de repetição íntima, mental, silenciosa, e, no dia seguinte, eu me surpreendia por ter conseguido.
     Reencontrá-lo casualmente naquela tarde, estando eu junto com toda a minha família foi profundamente emocionante. Fazia um bom tempo que não nos encontrávamos. A minha filha já andava! Comemorávamos o aniversário do meu irmão e eu me encontrava perto daqueles que não me deixaram sucumbir – cada um em seu papel!
     Naquela época, eu estava em pleno processo de me erguer novamente, criar forças para tudo o que estava por vir. Continuo com a minha velha mania de arrumar encrencas, quase me matar por elas, cair por elas e depois me reerguer. Eu quis tanta coisa... e vivi algumas. Vivi tanto que, por pouco, tudo deixei entre um fôlego de ar e outro. Acho que você ficou sabendo que quase morri em março de 2008...
     Ah! Eu queria muito estar sentada naquele sofá marrom do seu consultório, falando aos borbotões...
     Após aquele encontro no restaurante, dois meses antes de sair do Brasil, eu lhe escrevi uma carta, em minha mente, deitada no sofá da sala do meu apartamento, descansando diante do seu quadro “Cristo”; descansando entre uma batalha e outra, desfazendo-me de quase tudo, de objetos, apegos tolos, um passado infeliz. Ah! Quanta coisa doada, vendida e jogada fora! Uma mudança longa, caixas e coisas que pareciam procriar durante a noite. Jurei para mim mesma que depois digitaria palavra por palavra dos meus pensamentos, mas o tempo ganhou de mim e já nem me lembro mais... E aqui estou, em Los Angeles, na Califórnia, há quinze meses.
     Eu queria lhe dizer muitas coisas, mas fiquei procrastinando até que comecei a ver “Drs. J.”pelas esquinas do meu bairro ou nas longas caminhadas pela praia.
     Lembra-se daquele dia em que R e eu fomos nos despedir de você? Eu pensava estar prestes a ir embora, mas tudo mudou. R cumpriu o que disse e se foi. Quando ele partiu, eu não sabia que estava diante do intervalo. Dois anos! Outro dia, eu contei os anos da minha vida. Percebi que ela pode ser contada de oito em oito anos. A primeira oitava foi ótima! Porém, derrapou no final, quando minha família se mudou de cidade e tivemos que recomeçar, sem a menor vontade de fazê-lo. Na segunda, minha família se mudou mais uma vez e foi para melhor, mas foi quando comecei a ficar doente. A doença chegou feito uma cobra e não percebi tamanha era a leveza do mal. A terceira oitava, dos dezessete aos vinte e quatro anos, foi a época da cegueira. Eu não queria ver porque eu não aceitava. A quarta oitava foi o tempo da clareza, enxerguei o problema inominado e não o quis em mim. Encontrei você. Descobri que eu era uma pessoa doente, parcialmente incapacitada para os atos mais corriqueiros da vida. A quinta oitava considero tempo pleno. Acho que você concordaria comigo, para uma pessoa que vivia à beira da inadequação, eu alcancei o sucesso.
     O intervalo chegou no final da quinta oitava, seis meses antes do meu aniversário de quarenta anos. Tudo começou numa noite, na piscina de uma pousada, no Arraial D`Ajuda, na Bahia. Eu estava na piscina com meu filho. Havíamos viajado sozinhos, apenas ele e eu. Fizemos amizades assim que chegamos e numa das muitas noites, nos divertindo dentro da piscina, começou a chover. Água quente da Bahia e chuva gelada caída do céu sem anúncio. Decidimos não sair de onde estávamos, a água estava ótima, as conversas também. Todos muito felizes, inclusive eu. Mas houve um instante impreciso, oculto. Enquanto eu falava, entre uma palavra e a outra seguinte dita, aquela não-dita, não pronunciada, a palavra muda da vergonha do que eu vivia, do passado, da eterna promessa de futuro para mim mesma. Naquele momento, não senti raiva de mim, muito menos desejei ganhar da vida o poder de retroceder e começar de novo para eu me odiar menos. Lembra-se? Eu já havia feito as pazes comigo e fazia tempo. Apenas senti vergonha. Não desejei. Não sonhei acordada. Não me fiz promessas. Não consegui falar mais de mim, mas também não tentei fugir do grupo. Deixei que a vergonha se alongasse por dentro. Tomasse conta. Eu poderia apalpá-la de tão presente! Aceitei. Percebi que eu havia conseguido quase nada do que eu havia sonhado. Depois, depois tudo mudou.
     Meu pai ficou doente, teve um Acidente Vascular Cerebral. Um mês depois, eu engravidei, e, no terceiro mês de gestação, na véspera do meu aniversário de quarenta anos, sofri um aborto involuntário, numa época em que eu vivia em dois lugares diferentes ao mesmo tempo: no meu apartamento com R e o meu filho; e no outro, com meus pais. A professora de LR deixou no braço dele os cinco dedos dela. A diretoria da escola, onde ele chegou aos dois anos de idade, marcou reuniões e reuniões, mas no final o meu filho foi estudar num outra unidade, bem longe de onde morávamos, porque na unidade da escola em nosso bairro não havia outra turma, sequer noutro turno. Foi melhor para ele ficar lá, onde estaria num ambiente parecido, com o mesmo pessoal de apoio, uniforme e material escolar e de onde ele sairia direto para um colégio maior, isto é, sem ter que fazer testes. Naquele ano, tentamos comprar um apartamento e descobrimos que estávamos sendo enganados. Retomamos a busca por outro que nos agradasse e que pudéssemos comprar através de financiamento do Banco até que, na noite de 30 para 31 de outubro de 2006, eu tive um sonho.
     Sonhei com uma cidade chamada Saint Paul. Foi um sonho colorido, rico em detalhes: aeroporto internacional, ruas largas e planas, Língua Inglesa, frio intenso e uma catedral. Procuramos a cidade na Internet. Encontramos várias cidades espalhadas pelo mundo com esse nome, mas a catedral era uma só e eu a vi, com suas janelas de vitral colorido em capelas laterais, uma enorme cúpula arredondada ao centro no alto e arcos e torres em linhas retas circundando-a. Quinze dias após o sonho, R foi dispensado do emprego. Lembro-me de ver entrando em casa um homem derrotado, segurando uma caixa de papelão cheia até à borda e que me perguntava o que fazer. Fazer? Para mim, só havia um caminho: telefonar para o Consulado Americano no Rio de Janeiro e agendar uma entrevista com o cônsul a fim de atualizar o passaporte americano dele, cuja foto era dele ainda menino. R se despediu de poucas pessoas. No primeiro dia de janeiro de 2007, o meu marido embarcou para cá e eu comecei a viver o intervalo da minha vida. Fiquei no meu apartamento com LR, planejando os próximos meses para nós dois. Para mim, ficaríamos separados por apenas alguns meses e depois meu filho e eu nos juntaríamos a ele. Porém, R deixou um presente: eu estava grávida! Descobri dez dias após a sua partida.
     Cheguei aqui junto com Obama, no dia 20 de janeiro de 2009. Meu avião sobrevoava Miami ainda em luzes dispersas no amanhecer. A aeromoça exclamou ao microfone, “Obama! Obama! Obama!”, comemorando a posse do novo Presidente dos Estados Unidos, The Audacity of Hope, como eu li mais tarde num cartaz pregado na parede.
     Se eu não tivesse encontrado você, não estaria aqui hoje, não teria passado por todo o protocolo de assinaturas e decisões. Sem você, eu estaria encolhida em minha cama, deitada com os joelhos até a boca, apavorada com o mundo e seus rituais; ou embriagada, falando e acontecendo, prometendo e aparentando, mas sempre embriagada. Ou quem sabe, num sanatório?! A minha existência valeu por sua conta. Sou obra sua. Sou aquela que renasceu nas consultas trimestrais, por cerca de dez anos. A sua mensagem ora sutil, de forma interrogativa e exclamativa juntas, ora direta feito um trator, atropelava meus raciocínios distorcidos ou enganados. Você me conduziu a mim mesma, às entranhas doentes, numa dose certa, numa forma frutífera. Você, Dr. J, me mostrou os caminhos que eu deveria ou não escolher. Dependia apenas de mim.

Obrigada,
Suzana