quinta-feira, 27 de abril de 2017

Uma carta para W.



Los Angeles, 27 de abril de 2017.


Querido W.,

Como vai? Espero que tenha se recuperado plenamente da cirurgia. Espero que esteja feliz e pronto para novos caminhos, novos planos e decisões. Eu estou bem. Emagreci alguns quilos por conta de uma dieta rígida que aceitei fazer. Na realidade, estou ainda na fase das tentativas, com avanços diários, mas sem obsessões; detesto isso, você deve saber. "No fruits, no milk, no cheese, no bread"... algo meio desesperador em um primeiro momento... Eu simplesmente disse à médica que, ao nascer, ganhei um queijo de presente, que sou mineira, que gente do meu estado não vive sem queijo... mas, passo a passo vou aceitando a dieta... sou assim, gosto de vivenciar o novo, gosto de me testar, gosto de ver até quando e onde posso ir, e, por ser assim, muita coisa se torna diversão para mim. Amanhã, talvez, eu me canse disso e volte à antiga rotina alimentar.

Estamos na primavera. Já sinto saudades do inverno e já me preocupo com o verão nesta costa americana quente e seca. ​O deserto me atrai tanto quanto qualquer novidade porque ele parece realmente conter em si algum segredo, mesmo que eu já o tenha percorrido na força da rosa dos ventos, mesmo que não pareça mais algo novo... porque, saiba, se você sair das cidades e tocá-lo em seu estado mais do que puro você se surpreenderá. Há pouco tempo, visitei Death Valley, um parque nacional. Os confortos da atualidade nos protegem, nos fazem avançar, mas, mesmo assim, o deserto grita bem alto tudo o que somos, pó. Pó. Corpos frágeis. Almas ignorantes. Solitários seres brincando de divindades... O calor é cruel, é seco, parece que você não respira, seu nariz entope, sua boca permanece seca após beber água, os ventos ora fortes, ora nem tanto, sempre presentes, quase sempre agressivos chegam a você em pedrinhas que batem em seu rosto, em seu pescoço, parecem desejar arrancar seus cabelos. Não há sombra porque as plantas são quase rasteiras. Não há delicadezas nem nas flores. As grandes montanhas ao longe parecem deixar recados em imagens de rostos, de animais, sabe, sabe aquela brincadeira de tentar ver figuras nas nuvens? No deserto, você parece vê-las em cada canto, num mato, numa pedra, na estrada seca, nos céus claríssimos. Bom, eu vi. Eu vi até o que eu não queria ver. Penso que seja uma forma de abstração para passar sobre, para estar acima do que nos é ofertado. Aquilo lá é vida! E toda vida tem sua mensagem para ser lida, vivenciada... Eu obtive a minha. Tenho muitas fotos. Se quiser, envio-as para você poder apreciá-las.

É noite, são sete horas. Estou em casa. Dei-me férias de muitas atividades. Estou em fase de recolhimento, quase em um delicioso ostracismo. Muitas pessoas têm medo da solidão, eu nunca tive. Estar comigo mesma é a única maneira que tenho de dizer que sou plena, como se eu, desse jeito, pudesse desenhar o que é um ser humano respirando. Estar só é respirar. Respirar é estar só. Anos atrás, eu tive um problema de saúde e pude constatar quão maravilhoso é esse ato. A gente não liga muito porque ele é mecânico, mas, no meu caso, eu aprendi a vê-lo como preciosidade. Quando estou muito tensa, eu respiro bem devagar, como fiz naquele terrível dia e nos posteriores... Bem pouco, puxa o ar pelo nariz, levemente, solta pela boca aos poucos, assim, puf, puf, puf, em prestações, e vive.

Eu queria ter começado essa carta de outra forma. Eu a escrevi mentalmente dias atrás, enquanto dirigia. Eu pensava em conselhos que as pessoas nos dão ou soltam ao vento e às vezes a gente os agarra, às vezes, não. Falam muito em atravessar a porteira, dobrar a esquina, isso!, dobrar esquinas, eu mesma já escrevi sobre isso, uns poemas bons, viu?, algumas crônicas... eu concordo, temos que ir além, eu gosto disso, eu aprecio quem tem coragem e faz; eu adoro saber que a vida é um verbo e não um sujeito... mas, cá entre nós, é para se atirar mesmo, mas tenha um mapa nas mãos, não saia por aí vagando sem rumo porque isso soa ruim, soa quase desespero de quem teve e perdeu, de quem quer provar algo. Viver é simples, assim como é respirar, assim como é caminhar no deserto cru. E, provar qualquer coisa, para mim, só se for nos Tribunais ou perante um delegado nervoso. Dobra esquinas, conheça o mundo, reconheça você nos seus diferentes, mas tenha finalidades, tenha um plano, de preferência de longo prazo, daqueles que demoram anos para serem finalizados. Esquece os castelos de areia nas beiras das praias, romantismo e drama só ficam bem nas novelas, no cinema, nas artes. Viver é uma arte, mas arte simples, sopro de areia.

Meu querido, eu queria escrever uma carta para você, contudo, perdi-me em devaneios, em meus dramas ocultos - ah, isso me faz sorrir!
Dramas! Quem sabe, hoje, eu escrevesse uma ópera? Não. Ouço David Bowie. Ouço repetidamente "Wild is the wind". Para a ópera, eu teria que ter um mapa, um programa, ou esboço... e eu só tenho essa singela missiva, que chegue a você carinhosamente.


Grande abraço,


Suzana




Por Suzana Guimarães

sexta-feira, 7 de abril de 2017


Tenho saudade do mundo em 1980. Exatamente esse ano. Meu mundo era do tamanho do meu passo na rua.
Para você, Franck Santos.

domingo, 2 de abril de 2017

Uma carta para M. M.



Los Angeles, 2 de abril de 2017.


Hoje é domingo. Pela janela descortinada, sopra vento levemente frio, chega a mim o som dos carros na avenida. Tudo calmo, à espera de amanhã. Talvez tenha sido um dia de sol, praia, pessoas nas ruas, satisfeitas pela chegada da primavera. É abril. E eu nem vi. Não vi o dia, os meses, não estou vendo o ano passar.

Talvez, eu esteja apenas ocupada demais, preocupada demais, talvez, eu tenha visto esse ano percorrer noventa dias, sim, e finjo que não vi; por ser mais fácil. Talvez, repito, eu tenha vivido intensamente, à baforadas de ar, forçando pulmões e pernas, forçando a coluna ereta, o olhar elegante, assim, como se carregasse livros na cabeça...

Talvez é uma palavra quase covarde.

Querida M. M., escrevo-lhe essa carta porque, em uma noite solitária, absorvida por palavras alheias, eu reclamei não ter destinatários para uma eventual carta, para um encontro assim, na forma mais amorosa de alguém compartilhar rotina, boas notícias, más, uma certa melancolia, um certo desejo de forçar esperança... qualquer coisa. E você, então, disse-me, "Escreve para mim".

Cá estou. Vejo a tarde definhar diante dos meus olhos, sentindo o cheiro forte de lavanda na almofada em que me recosto para escrever. Hoje, mais cedo, deixei um vidro da essência se quebrar. O que salvei do produto eu passei em alguns cantos do meu quarto. Gosto das essências de lavanda e limão, elas acalmam e ao mesmo tempo revigoram. 

A vizinha está em casa, ouço música vindo do seu apartamento. Ouço também o barulho da minha máquina de lavar roupa, ouço uma sirene ao longe. Ouço tudo. Vejo demais. Estou exausta, minha amiga. Pareço um animal acuado, anseio apenas por um canto para não mais interagir com o mundo, e, somente esperar; esperar, esperar. 

Esperar o quê, você me perguntaria... claro! Esperar o machucado ou seriam os machucados... sim, esperar os machucados sararem.

Já posso dizer, é noite. É noite na costa oeste americana e eu gostaria de estar justamente aqui e ao mesmo tempo, bem longe, em um país distante e desconhecido, para poder dar uma risada, uma única risada, que ecoaria no poço da desgraça, fazendo subir e descer o som, na cadência de um velho balanço de jardim.

Talvez é uma palavra covarde. Então, direi a você, a única certeza que tenho é que o mundo é o cão deitado, na soleira da porta, que deixa qualquer um passar. O mundo é o cão que permite que um ou outro ultrapasse limites, e dá até licença... Mas, toda manhã virá, enfraquecerá em tarde e morrerá no escuro do olho desse cão. E esse cão morde na hora que quer, no tempo que desejar e, jamais, lhe dará alívio se não for a hora.

Certa disso, essa tal risada é totalmente desnecessária.

Recosto-me na lavanda, sorrio ligeiramente, descanso todas as dores em meu peito e escrevo-lhe, ofício esse acalentador. Tudo está em seu devido lugar. Eu estou. Você está. O dono do poço da desgraça também.

Inclusive o cão.

É mais do que noite. A lavadora ainda bate. A vizinha desligou o aparelho de som. A cortina fechou-se por conta do vento frio e fino...

Deixo-lhe um beijo e o meu muito obrigada por me ler.

Suzana


Por Suzana Guimarães.