segunda-feira, 31 de maio de 2010

A MEMÓRIA DA ÁGUA

                                             


Eu era sólida.
Desci, desci,
fui descendo o morro,
o corpo,
na brasa da lava
queimando-se...
Descendo, descendo,
levada,
carregada,
deitada.
Escoada lávica
em velocidade
no declive
em erupção.
Virei água, água,
que escorre pela calçada,
Efusiva.
Do morro,
escorri...
Nas pernas
Da brasa.
Mal toco
Mal tocada
Mal deitada.
Tão lábil.
Virei água
Deitada,
Revirada.
No avanço da escoada,
Água.
E, se água,
acaba.
E, se lava,
acaba.
Mas, e a água?
Cadê a calçada?
Cadê a lava?


Por Suzana Guimarães.

domingo, 30 de maio de 2010

XIV - Junho de 2004


T.O., 10 de dezembro de 1972.

     À minha frente, estava o menino ruivo. Lembro-me das suas sardas, do corpo gordinho e do cabelo cor de ferrugem. Lembro-me, principalmente, do suor que descia da testa em direção ao pescoço. Definitivamente, ele estava em apuros. E eu sabia. Estava atrás dele, imaginando os infernos pelos quais eu também haveria de passar. Eu era a próxima. Ele não conseguia fazer letra bonita no diploma do pré-primário. A cada diploma novo colocado à sua frente, um garrancho cada vez mais feio aparecia. Dona E rasgava a folha com violência, jogava os pedaços ao longe, gritava com o menino e, antes de bater a cabeça dele na carteira, dava outra folha para ele “assinar”. O ruivinho chorava e suava. Eu, sentada no chão, esperava a minha vez. Ainda me lembro da cena. Estávamos sentados em círculo. Ela ia chamando um por um. Não me lembro de nenhum outro aluno. Nem sei se fui a última. Eu era apenas a seguinte. Espera  infernal. Eu sentia angústia, sensação de vazio, como se eu, de repente, tivesse perdido pai e mãe. Senti solidão, porque eu não podia falar nada. Não havia como protestar. O que era protesto? O que era um bando de crianças de cinco ou seis anos diante de uma mulher robusta, autoritária e dona da escola? Eu era o nada. Era uma criaturinha pequena, muito pequena, franzina, de cabelos curtos, sem muita beleza. Eu não tinha a beleza de cabelos longos, lisos e louros que vi despertando carinho de professoras. O mundo todo se resumia naquele instante. Não havia mais nada no mundo. Só aquele lugar, com aquela professora e aquele papel. Não me lembro dela me chamando. Só me lembro da espera. Lembro-me de estar sentada na carteira, a folha chegando, e eu tensa, dura, mal respirando, escrevendo meu nome. Escrevi devagar, bem devagar. Lentamente. Posso ler, hoje, a assinatura trêmula, pequena, alinhada com pressão no papel. Meu nome escrito de forma bela. Mas que eu acho triste. Formiguinhas pretas e miúdas numa cartolina grossa, amarelada; que minha mãe guardou por anos a fio, sem se importar de estar guardando. Apenas transferindo de gavetas para caixas e de caixas para gavetas ao longo dos anos e de nossas inúmeras mudanças de cidades. Lembro-me que o tempo do meu escrever não foi eterno, mas, quando terminei, estava cansada. Antes não ter acertado da primeira vez, só para poder irritá-la. Mas, eu era criança. Era uma menina que levava leite achocolatado e biscoitos de maisena na merendeira. Que tinha amigos na escola, mas adorava também brincar sozinha. Que queria muito aprender a ler, bem rápido. Eu era uma criança de seis anos.

sábado, 29 de maio de 2010

XIII - Maio de 2004


     Após a cura, ou melhor, a partir do tratamento, vêm as revoluções. E, depois do revolver interior, tão solitário e pessoal, não se volta atrás.
     Mudei muito e R não. Sem a minha cegueira e a tortura paralisante, passei a vê-lo como ele realmente sempre foi.  R mudou pouco, é quase o mesmo da época do nosso longo tempo de namoro. Dr.J disse que ele teria que se adaptar à nova pessoa que estava ao lado dele, senão adeus casamento. E ele fez e faz de tudo para que continuemos juntos. Mas há peculiaridades em cada um de nós que são tão entranhadas que não percebemos o tanto da sua gravidade e cometemos erros, ou mesmo esquecemos que o outro pode não gostar.
     A frieza de R é herança genética, e, coitado, nem ele pode com ela. Frio, mas irascível em certos momentos. Ele tenta melhorar, mas vive caindo no mesmo tropeço. R é uma rocha  fria e dura. Tínhamos vinte e um anos quando nos conhecemos e começamos imediatamente a namorar. Conheci R numa época em que eu tinha certeza das minhas dificuldades. Época da total consciência da minha doença. Pensei várias vezes em contar tudo para ele. Dizer que eu não entendia o que acontecia comigo, que queria muito conseguir fazer o que ele, e todos, faziam. Mas eu preferia que ele me visse bela e perfeita como imaginava ele que eu fosse. R era um desinfeliz em seu mundo familiar. R queria toalhas de mesa estendidas para um café ou um almoço. R queria menos filosofia. Mais contato físico. Menos teses. R também não havia se dado bem com as mulheres. Engravidou uma mulher que não era sua namorada, na primeira trepada, e então foi pai, aos dezenove anos. Ele vagava num mundo irreal. De realidade, só havia os empregos que batalhava para conseguir e conseguia. Sem muita ajuda de terceiros. Sem compreensão de ninguém. Ele era só. Se sentia só. Sabia o que queria, mas desconhecia a comunicação, apesar de nascido numa família bastante letrada. Considero a carteira de trabalho dele um de seus orgulhos. R precisava de mim. Eu tinha uma família, que, apesar das idiossincrasias de cada um, vivia muito bem. Unida, amorosa e forte. E, com toalhas estendidas durante as refeições. Um grupo forte para viver todas as dificuldades, todos os infortúnios. Minha família é a colcha de retalhos de tecidos extremamente ímpares, quase que impossível de se juntarem. Tecidos ásperos que se unem a sedas delicadas. Estampados que não se encaixam. Formas opostas. Porém, tudo muito bem costurado, pela minha mãe. Como ela conseguiu cerzir com tamanha habilidade, talvez um dia, quem sabe, eu possa descobrir. Minha família não é aquela que deu certo. Será que existe essa espécie? Será que existe aquela que deu certo? Entretanto, as costuras nos prendem, os cerzidos nos marcam de forma irretornável. E foram muitas as pequenas emendas, que minha mãe gastou tempo e reza, até fazê-las parecer poesia. Eu era a namorada dos sonhos de R:  bonita, inteligente e estudiosa. Por influência minha, ele estudou muito, fez amigos, conheceu aquilo que seria uma verdadeira família e eu não ia decepcioná-lo. Nem a mim mesma. Contar para ele seria impiedoso à minha pessoa. Eu precisava de R. Então, com ele, me tornei completa, uma bola fechada, totalmente preenchida, não mais linhas pontilhadas. Não mais uma paisagem solitária, com amores furtivos e deselegantes. Eu tinha um namorado vinte e quatro horas, que não me questionava nada e punha as mãos em mim na medida que eu queria. Você comentava o tanto que ele era presente. Lembra-se das constantes idas dele à universidade? Chegava ao ponto de assistir às nossas aulas. R estava em todos os espaços da minha vida. Nos espaços vazios também. Enfrentei o mundo para ficar com ele. Minha família considerava-o problemático demais. Meus irmãos tinham ciúmes dele. Minha mãe ora o aceitava, ora o rejeitava. Meu pai parecia gostar dele, apesar de nunca se pronunciar a respeito. A família dele nunca me aceitou de forma plena. Creio que eu descia pela garganta dos pais de R de forma espinhosa. É, eu devo ter sido o ouriço-do-mar que eles tiveram que engolir. As omissões, as palavras e as atitudes dos pais de R mostravam de forma clara para mim, que, para eles, R deveria ter ficado com a mãe do primeiro filho, aquela que ele sequer considerou uma namorada. Mas não fui eu quem os separou. Separou? Como separar o que nunca se juntou? Eu o encontrei livre, sem qualquer tipo de compromisso com outra mulher. Jogado numa lata de lixo, alvo de reprovações pela paternidade fora de hora. Cuidei dele. E ele de mim. Demoramos a casar por causa do meu medo, mas eu apenas dizia que ainda não era tempo. Eu comandava o tempo certo de todas as coisas. Eu gostava de me encostar naquela rocha fria e dura e esquecer da vida. Das minhas dificuldades. Dos meus medos. Com ele, eu podia muita coisa.
     Nós nos casamos, um ano após eu me encontrar com Dr. J. Naquela época, falei sobre a minha doença e ele entendeu tudo com tamanha compreensão que eu me deliciei. Contei para ele toda a minha história, numa noite, num bar, no mesmo dia em que fui pela primeira vez ao consultório de Dr.J. R passou a ser o meu cúmplice. Alguém que me tirava das situações embaraçosas e, para isso, até mentia. Ele jamais falou de mim, por mim. Se eu quisesse me explicar ou não, era decisão só minha. R fez o silêncio que se espera de uma rocha.
     Entretanto, ele tinha o hábito, que aumentou com o casamento, de não acreditar em minhas dores físicas. Acreditou na fobia, mas se recusava a acreditar em mim quando eu dizia estar sentindo alguma dor.
     Mas, esse assunto, vou deixar para outra ocasião.
     Hoje, estou cansada.
     Este e-mail é para eu me explicar melhor, pois, naquele churrasco em que nos encontramos, eu reclamei muito dele com você. Aproveitei os chopes para desabafar. Mas, eu não sei se você compreendeu-me. Primeiro, porque foi muita informação de uma vez só. Segundo, porque você bebeu mais do que eu.
     Este e-mail, vou enviar. Não ficará junto com os tantos outros que deixo guardados na pasta dos rascunhos. Lá, onde ficam os esboços de uma Suzana que poderia ter sido. E seus esboços, traçados por mim, também!
     Boa noite! Beijos.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

XII - Março de 2004



     "Gostei de três mulheres - feito a música, ao contrário. A primeira preferiu ficar com a família dela. A segunda, tinha que cuidar da mãe. A terceira, dos filhos. Fiquei então com as outras, com as que cabiam em mim. Elas queriam viver aquilo. Elas gostavam do jeito que era. Se ficavam, é porque gostavam.
     Que bom! Não tenho mais complexo de inferioridade. Eu tenho baixa autoestima!
     Eu poderia ter um carro grande, uma moto grande... mas não tenho. Eu poderia ter a mulher que eu quisesse, mas não tenho.
     E fica assim. Ponto."
     
      Lembro-me da universidade. Você e a P colavam de mim em Direito Constitucional e, na última prova, que valia trinta pontos, você copiou algumas coisas e foi embora. Disse que eu escrevia demais. Eu disse para você não ir. A P e eu fomos para o próximo período, fazer a matéria seguinte e você foi reprovado. Não é de hoje que você teima em não me ouvir. Falo demais, escrevo demais, critico demais...
     Você não sabe, mas cortei o cabelo, bem curto. Curtíssimo. E a tolerância foi com os cachos... palavras de R.
     Elis Regina disse: "quando cortei o cabelo bem curto, descobri a minha cara".
     Ele está cortado há mais tempo que a descoberta dessa fala da cantora. Cortei aos poucos, na medida em que fui sarando, sem perceber, sem voluntariedade. Todo mês, um pouco. Porque eu também me encontrei, feito a moça, e dizem que mulher quando quer mudar de vida, corta, pinta, faz permanente, aplique, o que for preciso. E eu fui mudando tanto que ficou faltando cabelo para eu cortar. Os cabelos tampavam a verdade diante do espelho. E até quando passo as mãos nele, eu gosto. Pouca coisa para pegar. A cura trouxe o desprendimento de muitos preciosismos. Você começa a querer encher menos a mão. E a cabeça, por consequência.
     Adoro as suas respostas "okay, ponto". Apesar de querer esganá-lo em outras muitas vezes. Mas eu não posso torcer o seu pescoço, mas posso provocá-lo com as minhas palavras. E, observação, não ligo nem um pouco se você se importa ou não. Como dizia o meu pai, papel aceita tudo. Você aceita se quiser, se for um papel, ou querer  brincar de ser. Depende de você. Lanço a flecha e você que corra ou não corra, faça o que quiser. Com a cura, também deixei de me importar com a opinião alheia, nem sua e nem dos amigos. Me importo apenas com o que penso de mim mesma e com o que Deus pensa de mim. E também não me importo se você chama Deus de "aquele cara". Tenho certeza de que Ele também não se importa com o que você pensa dele.
     Sua última namorada! Para mim, o namoro era apenas a ressonância de seu próprio vazio. Tantas mulheres e nenhuma! Tantas camas e uma estreita e seca em sua casa. O sinal do oco que você se nega a preencher. Nada que o identifique. Nem um quadro na parede ou um origami para o denunciar. Nem luzes, nem cheiros. Apenas o seu suor de macho que busca a antiga cortesã. Ah! Porque eu sei que você, nas caladas das manhãs, num tempo curto demais, que não se pode e deve contar, você busca o velho corpo, distante um tempo suficiente longo de você. E você se satisfaz com a furtividade da coisa. Como se fosse boa a amplitude do nada. 
     Você deveria aceitar conhecer algumas das minhas amigas. Mulheres que o conduziriam delicadamente de encontro a si mesmo. Mas você tem medo. Mas você não quer. Não aceita. Rejeita, como um dia rejeitei procurar Dr.J. Você poderia descobrir espaços alagados dentro de si mesmo, longe do corpo grande e árido. Lá onde um dia deixou depositadas esperanças e sonhos. Por que será que a gente resiste a ser feliz?
     Você me disse um dia, lembro-me bem, e foi pessoalmente, que não havia nada, nada mesmo entre vocês. Eu entendi: não havia amor, tesão, desejo. Havia um namoro tão-somente. Às vezes penso que sonhei, imaginei você ter falado isso. Mas falou sim. Você estava sentado no sofá da casa da sua mãe, eu numa cadeira, daí você disse isso e se levantou e foi para a cozinha. Sua eterna mania de falar e sair andando, como se não tivesse falado coisas importantes e deixa a gente com a sensação que alucinou de vez e anda ouvindo demais.
     Com suas mulherzinhas você só faz sexo. Você não beija na boca. Beijar na boca é mais que o ato em si. É uma arrebatação: o meu feliz eu e o meu infeliz ego se abrem no peito, quase que explodem. É mais fácil fazer sexo que beijar na boca. Viver é beijar na boca. É se arriscar, é ir além, é sorver o desconhecido.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

7. BATER, SOPRAR E TORNAR MORNO

Para você, Carina.

     Sou uma pessoa que lê tudo, tudo mesmo! Jornal velho e rasgado sujo de urina de cachorro, bula de remédio, papel de bala, avisos pregados nas paredes, rótulos... compulsivamente. Leio coisa boa e coisa ruim! Leio por ler, por vício. E, nessa mania que começou na infância, sei, já no início da leitura, se é coisa que presta ou não. Não. Não sou formada em Letras e nem crítica de qualquer coisa, mas eu sei o que presta para eu ler. Às vezes, leio do fim para o início ou do meio para o início... procurando frases ou palavras que me fisguem. Depois leio tudo e, se for bom, leio de novo. E posso vir a ler mais e mais vezes porque gostei da batida. Para mim, uma boa leitura é aquela que possui cadência. Bate e sopra, bate e sopra. E a batida tem que me levar...
     Encontrei uma pessoa num blog que escreve muito bem. Fiquei fascinada! Ela parecia ler em mim coisas que escrevi com muita dor em meu coração. Entretanto, senti num determinado instante que havia algo estranho e acabei percebendo que ela só bate. E a batida é pesada e forte, feito aquele tambor grande, o surdo, que de surdo não tem nada. Bate estalando os dedos, eu poderia ouvir os estalidos. E daí passou o meu encantamento.
     Não dá para escrever sem um momento de leveza, não dá! Ninguém apanha tanto, todo dia, que não lhe venha um sopro morno para lhe livrar da tortura e do desespero. Antes de imergir na língua Inglesa - e eu ainda não consegui o mergulho profundo ou mesmo aparente, pois vago perdida na superfície - eu não gostava de gente e coisas mornas. Morno para mim significava uma pessoa totalmente sem graça, bege ou gris. Uma coisa chatinha, bonitinha. Para mim, tudo e todos deveriam ter cor ou nenhuma. Contudo, aprendi com os americanos a gostar do morno. Há muitas coisas mornas e gostosas. Minha filha no banho sempre diz, "Tá quente, mamãe" ou "Tá frio, mamãe", ela nunca reclama, "Tá morno"! Quando está morno, ela se senta na banheira silenciosamente. Os americanos usam a expressão housewarming , para aquilo que seria o nosso "chá de casa nova". Para eles, a casa nova será abraçada, acariciada, amornada de amores dos amigos. Muito lindo isso!
     Penso que mesmo aqueles que sofrem dor cruel ou qualquer tipo de violência conseguem sentir os ventos mornos dos espíritos de Deus ou mesmo do Espírito Santo a lhes acalentar, diminuindo-lhes o sofrimento ou mesmo extinguindo-o. Feito uma capa invisível que coloca o corpo e a alma sofridos num patamar acima do mal. Embrulhada numa névoa morna, a pessoa sente menos ou deixa de sentir. E o sopro da Vida não poderia ser quente ou frio porque dói ou assusta.
     Essa pessoa a qual me refiro, se esquece, ao escrever, de soprar. Talvez, quem sabe, ao soprar uns ventos mornos ou que fossem frios ou quentes, mas fossem sopros e não somente batidas, ela encontrasse mais beleza na vida, nela mesma e nos outros? Talvez esteja faltando ela apenas soprar.
     Gostei de muitos dos seus textos, Carina, porque você bate, mas sopra. Ontem, bateu com força. Hoje, abriu o baú da família do marido e me fisgou já nas primeiras linhas. Eu pude ver o azul dos olhos do bisavô, a '"véia" mostrando onde estaria o pelo e vi inclusive, você perambulando pelos túmulos atrás do cantinho dela. Cheguei a ver as flores que você colocaria de presente ao fazer pedidos para a "santa".
     Eu li o seu texto, do início ao fim e depois, li de novo. E posso voltar lá novamente para ver se deixei passar algo.
     Bom, primeiro eu postei um comentário abaixo da sua publicação e depois fui fritar bifes, cebolas e tomates, e, enquanto fazia isso, fiquei pensando em coisas mornas, olhares mornos, uma tarde na Bahia morna, um chá morno. Infelizmente, a água morna e o café morno justificam o mau uso da palavra. O dicionário diz que morno é tépido e, também, coisa sem energia, frouxa! Pois bem, então coloquemos menos energia nas coisas, sejamos mais frouxos. A dureza pode estafar. A moça do blog deveria tentar a inércia, o exercício do querer menos ou nada mesmo. E é geralmente nessas horas que o nossos desejos se realizam!
     É melhor se deixar balançar na tarde morna de um país calorento, espantando moscas.


P.S.: Eu, por pudores, deixei de postar esse comentário em seu Blog porque considerei uma invasão. O comentário tomou ares de redação de vestibular, quando não se contam linhas, se é que isso é possível. Vou deixar postado aqui no meu blog. Mas, é para você, Carina, as minhas conjeturas a respeito de bater, soprar e tornar morno!

terça-feira, 25 de maio de 2010

XI - Março de 2004

      

     Sim. Você não cobra das suas mulheres. E eu sei a razão. Você não cobra porque você escolhe apenas as mulheres que cabem no seu tamanho. Mulheres que não possuem suas próprias medidas nem para estar com você e tão pouco em suas próprias vidas. Pobres mulheres desorientadas! E você se sente à vontade. Não precisa pensar no que falar, no que vestir, no que explicar ou mesmo se comportar, não é?, você aparece quando quer e na hora que quer. E você não passou a vida fazendo isso apenas com as suas "grandes amigas", fez com os amigos também. Marcava encontro e não aparecia. Você não sabe que eu sei, e nem deve se lembrar deste fato - lembra-se de quando me disse "memória seletiva"?- certa vez, se encontrou com uma amiga no clube. Disse a ela que havia filhotinhos em sua casa, filhotes dos seus cães. Ela foi com você ver os cachorros. Quando chegaram na casa dos seus pais - você ainda morava com eles - você a deixou vendo a ninhada. E deixou mesmo! Sumiu. Saiu pela porta da rua sem ao menos dizer adeus. E foram muitos os amigos que sofreram em suas mãos. O homem que sumia! Quantas pessoas você deixou esperando-o ?
     Porque a sua preocupação é sumir com o feio que você pensa ter. Porque você se sente um homem de mau gosto, que não deveria ser tão alto, que não deveria ser do jeito que se vê no espelho: suas mãos, seus pés, sua pele, sua altura, tudo é uma carga que você carrega mas não queria ter que fazê-lo. Você gostaria de arrancar tudo e refazer, renascer; como se a vida fosse tomar outro rumo no momento em que você se dispusesse de tudo isso, mas são coisas indisponíveis e ninguém consegue se dispor das suas origens.
     No começo, quando nos conhecemos, eu pensava ser você um indiferente, alienado. Com o passar dos anos, eu via desprezo em seus olhos, no jeito que dava as costas e partia. Mas, eu estive em contato com Dr. J por longo tempo e aprendi muita coisa. Aprendi muito também enquanto meu mundo girava em torno do meu umbigo. Eu mantinha atenção fixa nele, no meu umbigo, e acabei por descobrir as minhas idiossincrasias e as alheias. Nós jamais seríamos um casal feliz. Somos opostos: você tão grande por fora e tão pequeno em seu "complexo de inferioridade"; e eu, tão pequena por fora e enorme por dentro. Dr. J me ensinou que está fora de moda a expressão "complexo de inferioridade ou de superioridade". Hoje, se fala em alta autoestima ou baixa autoestima.
     Como é que pode? Estranho, não é? Depois de tudo que lhe contei, como é que eu poderia ter alta autoestima? É claro que Dr. J não me disse isso no início do tratamento. Ele esperou o meu tempo de maceração. Esperou que eu afrouxasse os nós, desfizesse os laços, me entregasse às minhas próprias descobertas. Porque eu já não era um ser sozinho vasculhando o meu umbigo entulhado de dogmas ou incertezas. Eu era um ser acompanhado por alguém que sabia o que estava fazendo. Como dizer para uma pessoa doente, angustiada e mergulhada em dúvidas e revoltas íntimas; sufocada durante anos pelo sentimento de medo, repleta de desacertos e insucessos, a verdade de que ela mesma se jogou naquilo? É claro que eu já sabia tudo sobre noradrenalina e seus desequilíbrios, já estava ciente de que eu tinha um mal físico desencadeado por uma desordem nas minhas fibras nervosas. Quando ele me fez a revelação, eu já sabia e ele sabia que eu sabia. Eu não podia chorar, senão era fraca; eu não podia pedir porque significava humilhação; eu não podia abraçar porque o meu trono era mais no alto e ficava difícil descer. Eu não me permitia letra feia, nota feia, cara feia. Precisei alcançar o tempo da compreensão. Entender que eu era apenas uma pessoa que podia ou não pecar, podia ou não ter certezas, mas eu continuaria sempre do mesmo tamanho com a mesma qualidade, não importando as minhas escolhas. 
     E você? O que é que você tem? Por que é que tem? Nós dois sabemos. Repito: você tem sentimento de inferioridade. Muito engraçado. Nós em polos opostos. Nossa velha antagonia. Estamos nós, no meio de dois fenômenos psicológicos aparentemente opostos e antagônicos. Porém, num certo momento, eles quase que se igualam, pois os resultados e consequências são parecidos. Quando eu fiz a análise grafológica da sua letra, você confirmou o que eu disse. Mas parece apenas tudo muito teórico, não? Mas não é. Você, quando esnoba as mulheres, parentes e amigos, não dizendo aonde vai, porque vai, não se importando em descumprir sem avisar compromissos previamente marcados e dados como certos; quando você parece guardar mistérios, e se faz calado, de poucas palavras; quando você não responde de forma clara, diz coisas andando, sem olhar nos olhos; quando você sai por aí sem dar ouvido a conselhos amigos de pessoas sensatas; quando você demonstra preciosismo para com você mesmo, você na realidade está tentando esconder sua baixa autoestima. Então você demonstra superioridade. Mas não convence a mim. Na realidade, você faz tudo de tal forma para parecer que é o mais perfeito, o mais amigo, o mais leal, o mais amoroso, o mais atencioso. Que você não tem rachaduras na alma. Porque você, assim como eu fui, não quer ser revelado, posto às claras para todo mundo ver. Eu só podia mostrar belezas. Você não pode mostrar feiuras. Não pode deixar o outro ver que você se sente do tamanho da sua letra: minúsculo. E assim, permanecemos iguais.
    

segunda-feira, 24 de maio de 2010

X - Março de 2004


     Não são os seus sumiços que me entristecem. Eu até entendo o seu distanciamento de hoje. De hoje, porque os antigos, nunca perdoei.
     Atrasamo-nos no tempo, você e eu. Ah! eu poderia dizer isso pessoalmente, mas eu o quero só assim, como sombra a me acompanhar, uma imagem, uma criação minha. Você é o sonho bom. Aquele que faz com que acordemos animados para o dia que está por vir.
     O que me entristece em você, é que você cobra muito de mim. Cobra um posicionamento perante a vida que eu não posso mais ter. Não posso apagar o tempo produtivo que passou e eu não vivi. Você acha que eu deveria ter sido tudo, porque eu era tudo. Mas era tudo para você e para os outros, para mim eu era muito pouco. Pensei, por muitos anos, que eu tinha chiliques, fricotes de filhinha de papai ou algo semelhante.
     Eu não sabia que tinha uma doença. Se eu soubesse... Se sequer desconfiasse, é claro que teria procurado ajuda médica rápido. Nunca fui indolente. Eu tinha garra, amava a vida. Sempre gostei de estudar, de me informar. Sempre li muito, mas eu que tanto li, não li nada a respeito. Você pensa que não vasculhei a biblioteca da faculdade? Vasculhei sim e nada encontrei. A Internet não era algo popular, acessível a todos.
     Eu sabia de medos: de altura, de escuro, de raios e aranhas. Sabia de depressão e de manias. Tive um tio maníaco. Eu não sabia o nome da sua doença, nem tinha consciência de que era “uma doença” - pensava simplesmente “mania”. Era um tio “torto”, mas eu o adorava e por consequência, não dava relevância àquelas manias. Meu tio lavava as mãos por vinte minutos, olhados no relógio. Acordava às cinco da manhã para cumprir seu ritual no banheiro. Um ritual de lentidões e repetições. Esfregações, água e sabonete. Quando estávamos, as famílias juntas, em férias, dividindo uma mesma casa na praia – e que sempre havia um só banheiro – ele se punha no fim da fila na hora dos banhos e escovações de dentes. Não gostava de incomodar e nem de ser incomodado. Tinha o tempo todo do mundo para realizar sua meticulosa tarefa obsessiva. Ninguém na família nunca se aprofundou naquele problema. Ríamos apenas. Meu tio era dentista. Certo dia, ele estava em seu consultório, com certeza trabalhando, mas por alguma razão que apenas ele conhecia ou apenas sentiu – sem tomada de consciência – tirou o jaleco que vestia, colocou-o em cima da cadeira, deixou de guardar os instrumentos de metais que havia limpado, saiu pela porta, passou a chave e nunca mais voltou. Chegou em casa e se deitou. Deixou de tomar banho, de lavar as mãos e recolheu-se em profundo silêncio. A minha tia forçava-o a ingerir um ou dois copos de suco de laranja no decorrer do longo dia. Eu não fui vê-lo. Tinha medo de deparar com aquela realidade. Eu ainda não conhecia Dr.J. Eu ainda vivia minha realidade nublada, ainda tinha aquela visão distorcida, como se houvesse névoa nas coisas e tudo corria em câmera lenta. Ninguém conseguiu arrancá-lo daquele estado. Ele morria à mingua. Todos na família sabiam que ele morreria como num campo de concentração. Um dia, o sobrinho médico dele  o levou para um hospital. Mandou injetar soro em suas veias e aquele fiapo de corpo não resistiu. Meu tio morreu. Eu o vi morto no caixão e levei um enorme susto. Por mais que eu tivesse imaginado o seu estado físico, não consegui chegar nem próximo da realidade. Meu coração doeu ao vê-lo tão magrinho, tão indefeso em meio a cravos brancos e amarelos. Mas eu, na minha visão curta, não questionei nada. Não pensei nos meus “problemas”, não percebi que as doenças escondidas e silenciosas podem matar. Acho que ninguém quis pensar ou falar do assunto, ou, se quis, não fez o devido mergulho. Boiou na superfície do que é mais seguro, das possibilidades. Das possibilidades, pois muitas vezes chegamos a ter a devida consciência e queremos consertar todo aquele estrago, mas o outro talvez não queira. Não aceita. Não quer pensar e muito menos falar do assunto.
     No meu caso, estávamos na década de 1980 (a “coisa” começou por volta de 1983 e eu só encontrei Dr.J em 13 de outubro de 1995). Excetuando meu tio, eu não sabia de mais ninguém com “mania esquisita”. Sim, havia meu pai. Nunca falarei dos problemas dele, mas ele também tinha um hábito: gostava de contar dinheiro. Gastava bom tempo naquele ofício diário, constante. Contava e recontava, e, com a idade, passou a contar mais vezes ainda, o mesmo monte de dinheiro. Dizíamos que ele era o Tio Patinhas, que gostava de nadar nas moedas do seu cofre. Nunca demos importância àquilo também. Não fazia mal a ninguém. E quando ele se exasperava, dizíamos que ele tinha mesmo um mau gênio. Gênio do cão.
     Sempre conversei muito. Uma tagarela sem freios. Passei minha vida conversando com todo mundo, estranhos ou não. E nunca ouvi alguém contar que sofria das coisas que eu sofria, mesmo que apenas semelhantes. Parecia todo mundo sempre tão perfeito, tão razoável, que eu não me atrevia a revelar uma vergonha daquelas. Se eu tivesse me aberto um pouco; talvez alguém pudesse ter aparecido e revelado algo análogo... Talvez! Mas eu não me abri. Engoli meu segredo e vergonha e pronto. Nada podemos fazer quanto a isso. Hoje eu sei. Tem muita gente por aí com medo. Tem gente que tem medo de comer em público ou de falar em público ou de usar banheiro de avião... parece ridículo, não? Mas é a realidade de muitos.
     Entretanto, você sempre cobra de mim, e não cobra das suas mulheres. Tenho raiva disso. Você acha que sofreu mais. O seu problema com seus pais, eu sempre entenderei, mas com a sua ex-mulher não. Nem os seus problemas com as suas outras mulheres, ou "grandes amigas". Achei ridículo você se casar tão cedo, apenas porque a namorada cobrou casamento depois do hímen perdido, num ato desejado por ambos. Na realidade, você queria sair de casa, daí, aceitou a reclamação dela como boa desculpa. Pelo que ouvi na época, a donzela arrependida só quis você na cama para garantir filhos. E não o quis na cama, como não o quis na mesa, no banho, nas festas de família, nos encontros com os amigos e também não largava o osso que ela queria roer – você. Só que sofrimento não se mede. Não dá para saber quem sofreu mais, porque cada um sofre o tanto que lhe cabe. Cada um com suas feridas a lambê-las. Não se pode comparar porque não há como comparar. O ser humano é terra. Ou é terra dura, que não sente as marcas facilmente, ou é terra macia, daquelas em que as pegadas, mesmo que leves, ficam para sempre ali marcadas. A gente nasce assim: terra mole, terra fofa, terra pedregosa, terra dura, terra tratável, terra não tratável.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

5. Nunca é tarde para acertar!

      A conselhos, refiz as datas... Decidi colocar, após o número do capítulo, a data em que o e-mail foi escrito. Hoje, apenas transcrevo os e-mails trocados em 2004 e 2005. Entretanto, não gosto de copiar nem a mim mesma, por isso fui fazendo pequenas modificações nos textos originais, sem mudar a veracidade dos fatos. Atualmente, tenho uma visão mais distanciada de tudo e posso escrever com mais tranquilidade e sem peso. Às vezes, a Suzana de hoje se intromete e escreve um pouco também, mas eu coloco essas intromissões em itálico. A data no cabeçalho é apenas o dia em que fiz a postagem.
     Agradeço o apoio recebido.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

4. FOTO 19.05.10

(SCG - arquivo pessoal)

"Outro eu. Outra ela. Os mesmos nós."  
                 Gugu Keller

terça-feira, 18 de maio de 2010

IX - Outubro de 2004


     Certa vez, precisei tirar a segunda via do meu título de eleitor. Peguei um táxi. Eu poderia ter ido de ônibus, mas ônibus demora. Dirigindo o meu próprio carro, nem pensar, porque eu poderia me envolver num acidente. A minha atenção estava inteiramente voltada para o que eu ia fazer: assinar.
     Dias antes, ao preencher a ficha requerendo o documento pela segunda vez, mal consegui pegar na caneta. Preenchi do jeito que foi possível e assinei o pedido com um garrancho.
     Mas, naquele dia, dentro do táxi, eu pensava apenas que ia assinar, que ia assinar, que ia assinar... Eu que sempre amei letras bonitas! Com certeza, ficaria o rabisco tremido, torto, pelas metades. E ia carregar aquilo, daquele jeito, sempre! Ou até fazer um outro. Mas fazer um outro seria a mesma coisa. Eu já estava naquela situação há anos. Conhecia os resultados.
     Às vezes, eu ia de ônibus para o confronto. Indo devagar, talvez, no meio do caminho, acontecesse o milagre e eu me tornaria imediatamente uma pessoa segura, normal.
     Era sempre a mesma coisa. Era como se o mundo parasse de dar voltas. Ficasse suspenso no ar. E eu suspensa nele, por uma linha bamba, e, abaixo, o mundo a me julgar. Porque o mundo julga as diferenças. Principalmente elas, porque o mundo quer todos iguais, competentes e capazes. Era o que eu sentia e nada neste mundo poderia me atingir ou me transformar. Era a minha realidade e você nem ficou sabendo.
     Cheguei ao cartório eleitoral parecendo um fantasma de tão leve, porque faltava solidez, faltava energia, equilíbrio, razão. E aí você fica leve, parecendo um saco vazio em pé, sustentado por um cabo de vassoura ou pela linha de exigência da vida que não quer nem saber, lhe impõe atitudes ou então, você perde. 
     Eu havia acordado cedo para fazer aquilo. As mentiras já estavam prontas. Eu mentia sempre. O tanto que me livrasse da culpa. A serventuária do cartório com certeza estava diante de uma moça branca feito papel. Era fácil dizer "saí cedo de casa para fazer um exame de sangue e eles sempre atrasam, não é?" Muito preocupada, ela me perguntou se eu havia comido algo, após o exame. Respondi que não e num passe de mágica apareceu um bolo na minha frente. O lanche dela. Um bolo seco de padaria e eu nunca gostei de bolo seco. Recusei terminantemente, mas ela foi mais decidida e disse que eu não sairia de lá sem comer o bolo. Comi. Era difícil engolir porque eu não sentia fome naquelas ocasiões. Fiquei péssima porque eu estava comendo o lanche dela. A mentira. A pequenez de mim mesma. Quando acabei de comer, ela me entregou o título e disse que assinasse mais tarde, fosse para casa imediatamente e repousasse. E, nunca mais, nunca mais mesmo, andasse pelas ruas de estômago vazio.
     Sabe, eu não gosto de me lembrar disso, mas é que ando me lembrando para recuperar a coragem que se esvai. Não quero passar por esses momentos novamente. Tenho que lutar contra. Os remédios sozinhos não fazem muito. E, como eu lhe disse, estou tendo a minha primeira recaída.
     Eu não tinha uma iminência de crise. Tinha a crise. Dormia bem. Sofria com antecipação, mas sem crise.  Passava os dias que antecediam “ao confronto” em suspenso. Ou longos meses. Sofria apenas angústia, vontade de não ir, vontade de chorar. Às vezes, na antecedência da coisa, eu tinha confusão mental e só. Tremer, eu tremia sempre. Tenho tremor de família ou tremor essencial. E, para isso, não há cura. Se você toma o remédio não treme; se não toma, treme. Meu pai treme, meu irmão treme, meu avô ou avó provavelmente tremiam. Na hora da execução, eu tremia mil vezes mais, tinha taquicardia, calor pelo corpo todo, desespero, agonia, vontade de vomitar, raciocínio desfocado, vergonha, humilhação, pernas bambas. O mundo se tornava pequeno, do tamanho de uma ervilha. Ervilha sem gosto. Quase que podre.
     Falando em tremor, eu não sabia que há um medicamento que diminui a frequência cardíaca e a tremedeira, também usado por hipertensos. Bom, parece que eu realmente não sabia de nada. Eu nunca gostei de ver minhas mãos trêmulas. Não gostava de ouvir comentários alheios e risonhos de que eu estava tremendo. Mas eu tremia o tempo todo, porque minha família também tremia. Herança genética. Dr.J me receitou o remédio adequado.
     Dr.J prefere denominar a doença de Fobia de Desempenho. Ele encontrou a melhor definição, pois nem sempre um fóbico tem problemas no âmbito social. Eu tinha algum? Nenhum. Você esteve muito comigo, tenho certeza de que nunca desconfiou de nada.


É preciso lembrar que: não se deve tomar remédios por conta própria. Li num jornal a notícia triste de uma moça que morreu, em Belo Horizonte, Minas Gerais, porque tomou o remédio a que me refiro acima para fazer exame de direção. Alguém indicou o medicamento para ela. Músicos, artistas, políticos, cantores, enfim, pessoas que enfrentam plateia, costumam fazer uso dele. A moça morreu porque não se informou da maneira correta. É preciso ir ao médico. Apenas ele tem capacidade para saber se você pode fazer uso da medicação e a quantidade. A moça ingeriu oitenta miligramas, uma dosagem altíssima. Há pessoas que são proibidas de tomá-lo, como por exemplo, a asmática.    

  
     Quando escrevo para você, não sei de outro mundo, não transito mentalmente por aí, perdida, carente, insuficiente. Me sinto plena.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

VIII - Dezembro de 2005

     “Não me fez bem lembrar do meu casamento, de tudo que vivi com aquela mulher. Tudo o que lhe contei hoje, na porta da sua casa, me desgostou. Na época, para mim, era aquilo mesmo. Eu me casei cedo porque queria sair da casa dos meus pais. Eu também fui ou ainda sou um engodo... Eu também guardo segredos. Não sou bom em lembranças, em datas, esqueço tudo. Não me lembro com facilidade do ano em que me casei. Tenho que parar para pensar e fazer contas. Mas posso dizer que me lembro da época em que desejei sair de  casa. Eu sofria do mal da dúvida. Sabe aquelas certezas que as pessoas têm, e que não admitem prova em contrário? Pois bem, eu não tinha a principal delas. Antes de me casar, por causa de um papel que chegou às minhas mãos, eu tive que fazer perguntas a mim mesmo e eu não gosto disso, como você sabe. Fiz as mesmas perguntas aos meus pais, mas as respostas... bem, nunca houve respostas... A minha mãe se tornava um pouco agressiva para responder e o meu pai apenas brincava. Resolvi deixar o assunto de lado, mas não esqueci e acabei me perdendo. Casei para não me perder de vez, mas a relação com ela nunca foi a de um casamento. Eu não sei o que é uma vida de casado. Passei por fim a aceitar as coisas como elas se apresentavam para mim. Amei a minha mulher, mas nós não podíamos nos amar porque eu não amava a mim mesmo e ela amava mais a família dela do que a mim. Procurei ou talvez tentei seguir o caminho certo, mas a dúvida da incerteza de mim ou como você me disse "a certeza da dúvida" me levaram para um caminho arenoso. Eu jamais conseguiria conviver com você mais do que foi. Você para mim era o modelo. Eu era apenas uma areia movediça. E tudo piorou quando eu me separei e principalmente depois que o meu pai morreu. Eu tinha esperança de que um dia ele pudesse esclarecer as minhas dúvidas ou dúvida. Da minha mãe esperei apenas comandos. E, da minha mulher, por todo o tempo, eu quis o  sossego de um casamento.
     Mas hoje, quando relembrei os fatos, e deixei você estarrecida, dizendo que achava tudo um absurdo, não sei, mas alguma coisa me incomodou, eu cheguei em casa irritado. Peguei minha moto e andei por aí. Não sei dizer o por que da irritação. Talvez, veja bem, talvez, por ter contado aquilo tudo para você, e ter visto a sua reação de espanto, eu me irritei. Não com você, não com sua reação, mas, talvez, veja bem, talvez porque, se ela ou eu fôssemos outras pessoas, ou pelo menos ela, as coisas teriam sido diferentes. Se meu pai ou a minha mãe tivessem ido até o fim na minha pergunta e provado o contrário... Não consigo imaginar você, por exemplo, vivendo o que vivi, fazendo o que fiz, ou que deixei de fazer, falando ou deixando de falar o que falei. Você exige das pessoas e da vida o que quer, e não se contenta com pouco. Talvez hoje eu tenha me sentido roubado, que me tomaram algumas coisas preciosas...  E eu sei que, na verdade, eu me deixei roubar. Hoje, depois de ter me encontrado com você, eu tive a desagradável sensação de que fui enganado, iludido, sabotado. Mas eu deixei as coisas correrem por si só, nunca questionei a fundo, nunca encostei a minha ex-mulher, na época a minha mulher, na parede e exigi posicionamento. Achei que tudo que eu tinha era o meu "quinhão", a parte a mim destinada. Que já estava tudo de bom tamanho, a forma como as coisas se arranjaram para mim. Que eu nem deveria querer merecer mais.”

      Ando relendo as trezentas folhas... Eu tinha raiva de você. Muitas vezes precisei que você viesse e se desse um pouco mais. Na época da faculdade, você me olhava de cima. Pela altura que você tem, é a única forma mesmo... mas eu achava que você me desprezava. O seu jeito arredio me incomodava. E eu sentia vergonha porque imaginava que você soubesse de tudo. Era impossível qualquer pessoa saber, mas eu pensava assim.
      Quando você se reaproximou sabendo que eu continuava casada e vivia bem com R, pensei que não haveria problema algum pois não haveríamos de resgatar o passado que sequer vivemos. Foi só aquele beijo, tantos anos atrás. Lembro-me que foi a última carona que você me deu após as aulas. O contato na moto aquele dia foi mais inquietante. Eu estava distraída, pensando na prova que havia feito, quando vi você levantando a perna para subir na moto. Ardi de desejo. Subi calada e mal toquei nas suas costas. Fiquei sem fôlego. Em frente ao meu prédio, você parou a moto, eu desci, você me puxou e me beijou. Era o último dia de aula. Vieram as férias e você sumiu para me dizer um século depois que esperou que eu terminasse com F para que ficássemos juntos. E eu esperei por você todos os dias, pois apesar de F, eu me sentia só, faltando pedaço. E você já tinha as suas mulheres, seu harém e quem era eu para destruí-lo? Foi cômodo continuar com F e fingir que nunca havíamos nos beijado. Depois eu arrumei um carro e acabaram-se as caronas, mas eu teria pulado naquela garupa quantas vezes você quisesse.

domingo, 16 de maio de 2010

VII - Julho de 2005 - POEMA

Poema PARA LR

Disseram-me que felicidade não se pega.
Pois eu a pego
E a tomo nos braços.
E a aspiro com força.
Felicidade não se pega?
Ela é tenra,
Afirmo.
Ela é ágil, gira em torno de meus braços.
Ela exige.
Ela,
Eu jogo na cama.
Aperto.
Beijo.
Ela ri.
Sente cócegas.
E ri.
É dona do mundo.
E o mundo ama
A minha felicidade.
Que corre solta pelo vento
E voa,
Porque ela voa
Na dança
Pra cima,
Pra baixo.
Fios dourados ao vento.
E ela ama os pássaros, o barro e as poças.
E as moças.
A minha felicidade
É como o mar que me inunda,
Quando nele entro
E mergulho.
E me concentro.
Percebo,
Que é maior que eu.
A força do mar.
A força da minha felicidade.
De todas as idades.
Que vive em toda a minha cidade.
Iluminada,
Nela,
Única.
Me invade,
Etérea.
Felicidade não se pega?
É dela.

sábado, 15 de maio de 2010

VI - Julho de 2005

  
     Você me disse que eu havia desistido do meu diploma de uma forma muito fácil. Chegou a me considerar uma dondoca. Vi certo desprezo em seus olhos, algumas vezes. Mesmo que você conscientemente não soubesse. Um olhar desviado dos meus, para o alto, para os lados, para qualquer lugar que não caísse em mim. Quantas vezes você me cobrou o exercício da minha profissão? Quantas vezes você se recusou a parar para pensar que eu poderia não conseguir? Sim, você pôde. Você se formou, fez e venceu. Esteve bem desde nossa formatura. Mas para mim o futuro não aconteceu conforme o planejado e sonhado. Criei uma fantasia e me sustentei nela durante muito tempo. Acho que até hoje sou um engodo, e ninguém viu. Nem você. Nem você que, nos tempos da faculdade, parecia me ver crânio adentro, num arremesso de olhada que eu não podia sustentar. Mas não havia outro jeito. Porque nem sempre podemos, apesar dos desejos.
     Depois que nos formamos, cismei que ia ser promotora de justiça. Um dia, me encontrei com um ex-colega de profissão do meu pai. Ele me aconselhou a fazer concurso para o Ministério Público. Mergulhei de cabeça naquela ideia. Acreditei que poderia conseguir, apesar dos meus “probleminhas” e assim me dediquei de corpo e alma aos estudos. Porém, as dificuldades foram muitas e cada derrota pela qual eu passava significava um abalo forte em minhas estruturas psicológicas que já não eram boas. E você não estava por perto. E você não soube do meu sofrimento. Até então, eu havia passado em tudo em minha vida. Nenhuma reprovação nos tempos do colégio, sequer uma recuperação. Testes de seleção para entrar nos colégios? Passei em todos que fiz. O vestibular foi um só. A faculdade você testemunhou: passei bem em tudo. Enfim, não estava acostumada a perder. Hoje penso que deveria ter tentado concursos mais fáceis. Mas não. Bati na mesma tecla, insistentemente, como se não houvesse outros caminhos. Fiquei cinco anos, dentre altos e baixos, isto é, muito estudo, pouco estudo, envolvida naquilo até me ver vencida por mim mesma. Percebi que o problema era eu. Não havia a mínima possibilidade de sucesso em meio às minhas dificuldades. Então fui pintar porcelanas. Muita gente não entendeu minha mudança de planos, mas para mim era bastante normal. Talvez, sem ter consciência, eu quisesse pôr cor onde só havia branco. O nada. Ou o tudo aprisionado. Passei a vida vendo minha mãe envolvida nas artes. Dos treze aos quinze anos, fiz cursos que ensinavam a trabalhar com argila e telas, por gosto. Mais tarde, no período dos concursos, fiz por três anos curso de pintura em tela com um impressionista mineiro. Após um ano pintando porcelanas, procurei Dr. J pela primeira vez. Foi então que meus “sonhos jurídicos” escorreram pelas minhas mãos. Não havia mais em mim a mínima vontade de ser advogada, promotora de justiça ou qualquer coisa. Eu queria ganhar o mundo. Sorvê-lo todinho. Eu queria comprar coisas e assinar cheques. Eu queria ir a bancos, usar cartões de crédito. Queria me destrinchar, abrir a alma, amar e odiar o mundo e as pessoas e as coisas todas do mundo. Queria me deliciar com minhas imperfeições, sentir gostinho bom de ser eu mesma. Durante um tempo, vivi apenas. Me casei. Você foi ao meu casamento e não se comportou com muita educação, lembra-se? Não cumprimentou o noivo. Antes de Dr. J, eu não me casaria, jamais. Casamento requer ritual, requer cravar assinatura num livro diante do padre, dos padrinhos, dos pais e de mim mesma, o que era pior. Como fazê-lo sem tremer, apavorar, suar, perder a razão, o controle? E fazer sem ser vista. Eu sempre precisei mostrar tudo muito perfeito. E mostrei. Unhas feitas, cabelos soltos ao vento, numa desordem organizada, alinhada. Adequadamente vestida. Adequadamente sorrindo e com batom nos lábios. Eu transpirava segurança e desenvoltura.
     Assisti a uma entrevista de uma médica psiquiatra, este ano, na televisão. Ela dizia de forma bem clara que fóbicos sociais têm medo de gente. Medo de gente. Para mim, um imenso absurdo. Como é que alguém consegue generalizar tanto? Eu nunca tive medo de gente. Sempre gostei do convívio, da amizade, das rodas de amigos. Nunca me importei com estranhos. Isso jamais foi problema para mim. Era, na realidade, minha salvação. Através de meus amigos passados e presentes, eu vivi. Se, quando olho para trás, sorrio de momentos bons e inesquecíveis, é porque eu tive amigos. Aventurei-me em caminhos desconhecidos, atrás da vida. Se eu tive medo de me envolver numa explosiva paixão, isso é outra história, não tendo nada a ver com meu passado fóbico. Acredito que a maioria dos fóbicos não tem medo de gente. O que deve existir é fóbico com fobia de gente. Há fobias para todos os gostos. Acredito que aquela minha imagem de forte era um reflexo verdadeiro do meu interior. Medos e  inseguranças era poeira que eu enfiava rápido por debaixo dos tapetes.
     Após o casamento, tentei engravidar e vender objetos de arte, o que foi em vão, mas vivi com certeza três anos de deslumbramento. Até que percebi que era hora de tentar as coisas do Direito novamente. Matriculei-me num curso preparatório para concursos. Sabia que precisava de tempo, pois estava bastante desatualizada e assim fui para lá com a intenção de ficar até passar. Ia às aulas e estudava em casa todos os dias, por dois semestres. No final de maio de 1999, engravidei. Resolvi fazer mais seis meses de curso e comecei a me inscrever para os concursos que apareciam. Contudo, parei no primeiro trimestre, no quinto mês de gravidez, porque vieram os problemas com as tentativas de retirada do Rivotril. Você sabe, não se pode tomar remédios durante os primeiros três meses. É uma precaução. Quantas crianças nascem defeituosas mesmo que a mãe não tenha ingerido nem uma aspirina? Muitas. Mas se você os toma e a criança nasce com problemas, não há perdão. Você não pode saber o quanto foi difícil. Não consegui retirá-lo de uma só vez. Delirei. Vi macaquinhos com rabo e tudo atravessando uma rua. Três juntos, de mãos dadas. E eram só crianças. Meu estado não era bom. Dr.J, R e eu tivemos medo de que eu perdesse o bebê. Voltei, grávida, a tomar Rivotril, e, até o final da gestação, tive que ir reduzindo a medicação aos poucos, para que o bebê não sofresse abstinência ao nascer. A cada redução de miligrama, eu sofria tremores, calafrios, uma sensação de que venenos corriam pelas minhas veias. A garganta ardia, numa necessidade de algo e meu peito queimava em ânsia. Eu sentia um incômodo constante. Uma agitação paralisante; estava em todos os lugares e em nenhum. Lugar algum era suficientemente bom para eu ficar. Nenhuma conversa era o bastante para distrair minha atenção para fora dos meus limites: meu corpo e minha mente. Fiquei recolhida dentro do meu corpo, presa, desorientada. Não vivi a paz de uma gravidez desejada. Eu só me sentia bem quando estava dentro d’água, nadando ou boiando, sentindo o sol em mim; ou quando conseguia dormir. No final, não andei pelas ruas. O chão parecia de nuvens e eu deslizava em total desequilíbrio. Me tranquei em casa.  Faltando setenta e duas horas para o parto, retirei tudo. Fiquei limpa. Zerada. Recebi parabéns na sala de parto. LR nasceu e eu fiquei com ele os dias inteiros. Não tínhamos empregada. Minha mãe ficou em minha casa até o décimo terceiro dia de vida do neto. Depois se foi. Ela e minha irmã tinham a vida delas e apareciam só de vez em quando. E quando apareciam, eu corria de um lado para outro, fervendo água para o banho, fazendo chás, colocando roupas na lavadoura e a louça suja na máquina de lavar. E elas ficavam com LR no colo, pedindo coisas a cada dois minutos. Não havia tempo nem para eu pentear meus cabelos. Quando elas chegavam, parecia que eu me incumbia de mais obrigações ainda. Elas surgiam quando sentiam vontade. E do mesmo jeito que apareciam, sumiam. Estando sozinha com meu filho, eu lavava panelas na pia da cozinha, empurrando com um pé o carrinho dele. Pendurava roupas no varal com ele pendurado no meu pescoço. Não sei como ele não caía! LR chorou sem parar até o quarto mês de vida. E eu chorei junto. Quando R chegava em casa à noite, eu colocava o bebê em seus braços, assim que ele abria a porta da sala. Entrava no banheiro, fechava a porta com chave. Ligava o chuveiro e me sentava num banquinho de plástico que já ficava dentro do boxe. Chorava com dor na alma. Eu queria tanto a maternidade, mas ela estava sendo maior que eu, bem mais que eu podia aguentar. Hoje penso que ser mãe não foi o problema. A grande dificuldade foi conciliar um bebê de treze dias com as obrigações domésticas. LR berrou até o dia em que decidi que não precisava de ninguém, apenas de R, e então começamos a viajar. Com as viagens, meu menino que já estava com cinco meses, mudou muito. Tornou-se mais calmo. E nós também. Até então, eu achava que deveria ter a permissão da minha família para tudo que dissesse respeito a ele, até mesmo se poderia viajar ou não. Se era viável ou não. Alcancei a liberdade quando passei a fazer as coisas do meu jeito. Deixei de ser permissiva. Creio que era tudo resquício da época longa da minha vida em que eu precisava da anuência dos que eu amava para tudo que fizesse, até quase o simples respirar. Talvez, quem sabe, o meu respirar fosse longo demais, ou curto demais, quem sabe... Você vai dizer “que exagero”, mas é verdade, chegou um momento, um momento negro da minha vida em que eu não queria desagradar nunca. Eu tinha coisas a esconder, não queria passar por certos tipos de exposição e precisava não fazer feio. Eu precisava ser uma paisagem perfeita.
     Antes do início dos passeios, quando LR completou dois meses, consegui me acertar com uma moça, diarista, que ia à minha casa duas vezes por semana. Um dia, eu estava almoçando e conversando com ela, na cozinha da minha casa, enquanto ela lavava panelas. LR estava deitado no carrinho dele, perto de mim. Por um momento, me esqueci dele e desabafei toda a tristeza que vinha presa no meu peito. Eu quis chorar, mas não consegui. Minha empregada ouviu calada. Quando acabei, empurrei o carrinho até o quarto dele. Me sentei no sofá e olhei para ele. Eu sempre tive dificuldade para chorar. Paisagens belas são aquelas que não desagradam. E choro desagrada na maioria das vezes. Vivi o hábito, que ainda está um pouco enraizado em mim, de manter uma massa, um punhado de angu quente preso na garganta. Chega a doer. Uma camada forte de pressão que agarra e por mais que eu queira, não consigo expelí-la. Seria o ridículo daquela pessoa que engasga e bloqueia o engasgo, e o angu ou aquilo que provocou o mal estar fica lá, parado, incomodando, para não incomodar. Mas então eu me deparei com os olhos de LR. O olhar de LR. Ele tinha dois meses de vida e me olhou com o olhar de amor que eu nunca havia visto. Ninguém nunca havia me olhado daquela forma. Nunca esquecerei o choque que levei. O susto do amor. Olhos tão pequeninos que diziam me amar. Eu vi. Eu não criei aquele olhar para consolo meu. Não fantasiei. Nunca mais ninguém me olhou daquela forma, nem ele próprio. É claro que pelos caminhos da minha vida vi olhares de amor. Olhos que se fixaram em mim, e neles havia amor, mas vinham outros elementos também, juntos com o sublime sentimento. Vi olhos de amor com desejo. Vi olhos de amor com paciência, com dor. Vi olhos de amor com curiosidade, com dúvidas. E eu chorei ao levar o susto. Saiu o engasgo, o angu quente, a dor de dentro do meu peito. Chorei copiosamente.
     Quando LR fez um ano, eu já tinha pleno controle da minha vida, mas decidi colocá-lo numa escola somente quando ele completasse dois. Voltei à minha medicação anterior, no décimo mês de vida dele, porque eu sabia que meu caminho era longo. Eu não me sentia plenamente curada, e, mesmo que desse para viver com o que já havia conquistado, eu queria qualidade de vida. Nunca quis um semi-tratamento. Pelas metades, eu havia vivido muito. Assim, não estudei e nem trabalhei por dois anos. Foi nessa época que surgiu a possibilidade de vender porcelanas numa loja, mas apenas minha mãe pintava e eu então passei a frequentar cursos de pintura na louça. Pensei que seria uma boa oportunidade de ganhar dinheiro e comecei a trabalhar com ela. Trabalhei também como voluntária num Juizado Especial. Você apareceu nessa época e me criticou porque eu trabalhava de graça. Não me importei com a sua crítica. Lá, eu ia duas vezes por semana. Quando completou um ano, saí. Foi gratificante trabalhar no Juizado, conheci ótimos profissionais, fiz amizades. Pude ajudar pessoas carentes e perdidas. Realizei um sonho antigo de cidadania. Saí porque não surgiu nenhuma oportunidade de trabalho remunerado e não é mesmo fácil ser cidadã sem dinheiro.        
     Você, certa vez, me disse que eu deveria ter posto meu filho num berçário, mas eu fiz o que realmente era o melhor para mim. Em meio às minhas frustrações, LR chegou e me resgatou das tristezas, da minha constante sensação de inutilidade.

3. NOTA AO LEITOR

Oi, minha amiga!

     Fico feliz por você ter visitado o meu Blog. As pessoas estão se pronunciando aos poucos e os que estão fazendo, se comunicam via e-mail ou através das mensagens pessoais do Facebook. Acho estranho porque há um espaço para comentários aqui na minha página.
     Bom, eu ainda não contei a história toda, tanto que a divido em capítulos, I, II, III, e vai até o XLIX. Haverá" Informações Técnicas ou Psiquiátricas" e também" Fontes Consultadas". Foi ótimo você ter se pronunciado a respeito, pois percebo agora que talvez as pessoas estejam concluindo erroneamente as minhas íntimas exposições. Provavelmente, por não estarem lendo o conteúdo inteiro como você me confessou (sem problemas, cada um lê na medida que pode ou quer e de acordo com o seu tempo) não estão entendendo.
     Escrevo sobre o meu passado. Procuro focar no problema de saúde que tive, mas não me esqueço da leveza de certos momentos, das descobertas e do amor. Os e-mails foram trocados em 2004 e 2005. Procurei relatar a época da ignorância de quando eu era doente, a descoberta de que eu poderia me tratar, o tratamento, a cura, a recaída e os sentimentos todos ou quase todos que se apoderaram de mim naquela época, inclusive o reencontro com um amigo e a tentativa de viver uma compreensão mútua. 
     Escrevi um pouco sobre os  meus últimos anos - de sucesso! - na Carta para Dr. J, onde falo das minhas vitórias, conquistas inúmeras..., mas não me estenderei para fora dos limites daquela época. Eu me tratei e me curei há tempos e preencho cheques e qualquer outra coisa. Após a Carta para Dr. J, eu começo a escrever sobre a doença. Tudo começou quando eu tinha 17 anos e hoje tenho 43. Não é possível para mim - e também não quero - jogar tudo de uma vez só na Internet. Estou escrevendo porque só agora tive esta ideia e só agora estou tendo tempo. É claro que também falarei dos proveitos que tirei de tudo o que aconteceu. Aprendi a enxergar melhor as pessoas pois eu tinha que prestar muita atenção nelas para poder esconder o meu segredo, os meus medos. Eu tinha que me antecipar em tudo e saber convencer os outros a fazer as coisas do jeito que eu queria, já que eu, por exemplo, às vezes, levava processos para o banheiro do Fórum e isso eu não podia fazer. Aprendi a dar valor à vida e à saúde. Não estou agarrada a esse passado, como você mencionou. Hoje, sou uma outra pessoa. Realizada, feliz, ainda acertando e errando como todo ser humano, ainda tendo medos, mas medos normais, não-patológicos.
     Quanto à minha exposição é apenas com o intuito de tentar ajudar quem precisa e eu deixo isso escrito na primeira página, à direita do meu Blog, no Para Você. Eu conheço tantas pessoas doentes! E elas me contam os seus problemas, como por exemplo, um amiga que não pode fazer xixi no banheiro de avião por puro medo, e ela precisa viajar sempre a negócios. Mas ela não faz nada para se tratar, e, quando viaja, não toma nenhum líquido mesmo que seja num voo de mais de doze horas.
     Hoje, eu sequer penso nos concursos públicos. Eu escrevo sobre isso, e ainda escreverei muito mais, porque estou contando uma história... Eu ainda não acabei de contar a história.
     Estou feliz por você ter tido tempo e boa vontade para se sentar e escrever para mim, expondo todos os seus pensamentos e dúvidas. Vou deixar a minha resposta postada no Blog, pois talvez as suas perguntas possam ajudar a esclarecer dúvidas a respeito disso.
     No meu Blog, escrevo sobre uma Síndrome Silenciosa e há outras, e, eu também me refiro a elas. Por serem silenciosas é que são perigosas. Como disse Dr. J, há muita gente sofendo desses males ou de outros assemelhados, ou até piores; muito mais que possamos imaginar. Não se preocupe. Não vou revelar quem é você.
     Obrigada.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

V - Março de 2004

    
     "A imagem que toda a nossa turma tinha de você era outra. Todos acreditavam que você ia ser uma das mais brilhantes, ou como advogada ou promotora de justiça, ou em qualquer outra coisa na qual se envolvesse. Você era a mais brava e corajosa de todos, era a que enfrentava a turma e todos os professores. Era caxias, sabia tudo, tinha resposta para tudo, era inteligente e audaz.
     Eu perdi um de seus melhores confrontos: aquele em que você descobriu que o ladrão que rondava a nossa sala estava dentro dela mesma. Nós, tão tolos, acreditávamos que alguém entrava em nossa sala na hora do intervalo das aulas e nos furtava. Ou tão covardes, preferíamos crer nisso para não criarmos confusões. Até o dia em que você foi furtada e o mundo desabou. Eu não assisti ao desabamento, mas o assunto durou dias. Alguém, anonimamente, pregou uma carta para você no mural de avisos. Eu me lembro bem, o anônimo dizia que seríamos péssimos advogados pois sequer conseguíamos defender a nós mesmos. Um de nós estava nos lesando , mas preferíamos o silêncio por puro medo. Excetuou você. Ele próprio se disse medroso para revelar a cara. E, no final do texto, escreveu que você, com certeza, seria a única de nós a dar certo. 
     Agora, de repente, essa imagem se desfaz em pedaços quando você me conta que, por trás desta capa, havia uma doença incapacitante, crônica, disfarçada tão bem por tanto tempo. É difícil  acreditar”.


     No auge da doença tive que ir à luta várias vezes. Dei minha cara a tapa: fiz um curso superior, tirei carteira de motorista, estagiei, advoguei (pouco, mas fiz) , namorei, fiz amigos, saí à noite para dançar, beber, me divertir, me apaixonei por alguns homens que não me quiseram, desprezei outros, viajei bastante, enfim, fiz o que podia. Eu tinha que fazer. Eu tinha que fazer força como todos devem fazer. Tem muita gente que não tem doença mas nada faz. E, se faz, se agarra na força do outro. Para muitos, inventar dores e desculpas é mais cômodo. Tem gente que vive por viver, senta na mala e espera o dia da mudança. Eu vivi. Não sentei na mala e esperei. Fui tentando, ao longo do caminho, enchê-la de tudo aquilo que me agradava. Eu podia não alcançar os resultados, mas carregava-a com vontade, pois não ia passar pela vida carregando uma mala vazia! Mesmo que cheia  apenas de sonhos, haveria de transbordar. Falta vontade nas pessoas, falta esforço, como se a vida não exigisse força. Desde que nascemos, fazemos força. O nascimento de uma pessoa não é um passeio alegre e fácil pelos campos.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

IV - Outubro de 2004

    
     Ando arrumando gavetas e cabides. Separando roupas que já não me servem. Sapatos que não quero mais. Perfumes que me recordam o passado que não me importa muito. Encontrei um antigo presente, embrulhado em lenço. Um presente que você me deu, há muito tempo. Você se lembra? Creio que sim. Um presente sem par, sem igual. Cheio de sentidos, único em todos estes anos, inesquecível, porque na realidade é seu. Não meu. Nunca será meu, apesar de estar no meio das minhas coisas, apesar de estar dentro dos cheiros que são só meus. Mas ele está lá e continua impregnado do seu poder. Pôr as mâos nele é tocar em você. E eu quero devolvê-lo. Penso que tenho a vida toda para fazê-lo e que também não tenho mais tempo nenhum. Eu não deveria ter aceitado-o. O seu anel de formatura. Um anel enorme, que não cabe em nenhum de meus dedos. Você queria que eu sempre me lembrasse de você. Mas você não serve em meus dedos. É isso, ou os meus dedos não servem em você.



     R andou desempregado por longo tempo e não sei se pelas consequências disso ou pelo meu defeito de fábrica, voltei a sentir meus medos voltando. No começo foram pequenas crises de labirintite até que tive uma que me jogou com força na cama. Dr.J me disse que são patologias diferentes, uma coisa é a fobia de desempenho (ou social) e outra coisa é a labirintite, mas que há sintonia (não foi essa a palavra que ele usou) entre elas, algo como linhas paralelas (que um dia se encontram sim!). Quem tem labirintite pode nunca sofrer de fobia, mas às vezes ela vem junto, ou melhor, logo depois. Essa doença pode abrir caminho para a fobia. No meu caso contribuiu. Minha primeira crise de labirintite, eu tive com dezessete anos, logo após ter passado no vestibular. Fiquei quinze dias de cama. Durante os anos em que me tratei da fobia não tive tais crises, nem sequer brandas. Estou novamente me tratando com os meus velhos remédios. Estou tomando Zoloft, que está sendo muitíssimo usado não só para tratar depressão, mas também fobias. Voltei a tomar Rivotril e aumentei a dose diária de Inderal.



     Hoje estou cansada. A televisão está ligada na maior altura, R parece ser surdo e LR está pulando pra lá e pra cá com uma bola de soprar. Vejo a bola e penso que sou ela. Fico flutuando pra lá e pra cá. Numa flutuação incômoda, pois não quero o flutuar, quero pés fincados ao chão. Eu deveria trabalhar mais. Mas gostaria de estudar um pouco e tentar novamente os concursos. Aí eu teria que estudar muito, não é? Eu queria mais tempo para mim. Queria ler mais. Reclamar menos. Preocupar menos com dinheiro. Com contas. Que o mundo se danasse e eu fosse mesmo a bola a voar aqui e lá, mas não posso. Tenho que prender a linha em algum lugar. Penso se largo o Direito de vez, se invisto mais no trabalho com as porcelanas ou se paro tudo e volto a estudar apenas. Todos são investimentos, mas qual deles é o melhor?



     Desde os dezessete anos, vivemos nós dois de encontros (culpa sua que gosta de sumir), mas os separo em dois momentos: o primeiro quando cursamos juntos a faculdade e éramos colegas - amigos?, e que se estendeu até o meu casamento. O segundo, o dos e-mails trocados. Considero o último o mais verdadeiro, principalmente porque contei minhas verdades, lembra-se? Você me ofereceu o ombro via Internet. E então eu me abri, porque você me conduziu com ternura ao caminho do simples. Você tem o dom de esquecer, apaga tudo. Eu, ao contrário, não tenho o botão delete. Armazeno tudo, quase que para sempre. Tem gente que abre janelas. Minha cunhada é assim: ela abre uma janela, dá uma olhada e fecha. Quando fecha, esquece. Se precisar, abre novamente. O problema é quando uma janela vai abrindo em cima da outra, diz ela. Penso que, às vezes, era melhor esquecer para sempre; eternamente esquecido.

2. Foto da praia das pedras e coquinhos 12.05.10

fotografia, por SCG 

terça-feira, 11 de maio de 2010

III - Abril de 2004


     Você não me entendeu. Acho que você pensa que tive Síndrome do Pânico. Ou será que entendeu, por fim, depois de alguns e-mails? Quero a sua compreensão. Por quê? Não sei ao certo. Será que sou eu que acho você o máximo? Será que sou eu que invejo a sua liberdade e coragem?
     Cheguei a falar da minha louca - ou seria tola? - permissividade? É um dos males dos fóbicos (gostou da palavra? Técnica. Forte. Concisa).
     Se pudermos enumerar, o primeiro mal é a evitação. O segundo, é a permissividade. O fóbico, assim que percebe que tem um problema, que lhe traz vergonha e sentimento de humilhação, faz de tudo para disfarçar e esconder, e, para isso, passa a dar permissão a todos. Principalmente aos mais próximos, àqueles que, num deslize, poderiam questionar muito, criticar severamente, ou mesmo, revelar ao mundo a estranheza, aquela coisa que parece que ninguém tem. Bom, para mim, isso seria um estrago avassalador.
     Não adianta procurar convencer um fóbico a fazer coisas que ele tem pavor de executar ou viver. Não há palavras bonitas, textos "eu estou ok, você está ok?", sucos de maracujá, chazinhos calmantes e nem mesmo os calmantes fortes, aqueles que simplesmente empacotam a gente, não nos deixando acordados para ver com clareza a situação. Nem reza brava, nem amor de mãe, nem aula de artesanato, massagem, Yoga, nada faz efeito sobre o  seu medo. Eu fiz tudo isso e de nada adiantou.
     Eu não tive pânico no sentido médico. Eu tive medo. Sofri de medo. A síndrome do pânico faz você ter sudorese, taquicardia, a sensação de que está tendo um infarte ou a certeza absoluta de que baterá as botas. Quem sofre de síndrome do pânico nem sai de casa e pensa que, inclusive dentro dela, está em risco e poderá vir a passar mal. É cruento. Já a fobia é medo. É terror, grande pavor diante de uma determinada situação. Dá sudorese, mas nada que escandalize. Ninguém percebe, ninguém vê! Dá tremor, as mãos não obedecem ao comando do cérebro. O rosto fica quente, parecendo febre. Você tem a sensação de que o mundo todo está lhe vendo, reparando seu jeito, investigando-lhe, quando, na realidade, está todo mundo olhando para o seu próprio umbigo. E não é timidez. Uma pessoa que sofre de fobia não é necessariamente tímida. Eu nunca fui tímida. Você sente angústia, mas você não chora. Não é fraqueza moral. Dá vontade de evaporar, sumir, cavar um buraco no chão e desaparecer. Eu evitei determinadas situações e fiz qualquer coisa para não ser descoberta, principalmente dei licença.
     Você não acredita, pensa "e toda aquela braveza?". Não se espante. Muita gente também não acreditou quando soube. E eu, eu nunca acreditei também. Principalmente eu. Parecia possessão demoníaca. Não ria, eu pensava em tudo! Eu me questionava muito, me sentia ridícula. Como eu poderia me estrebuchar diante de coisa tão corriqueira? Como é que eu poderia ter tanto medo do medo? Eu tinha medo de assinar o meu nome, de preencher uma ficha. Aí então, nesse caso, seria pior! Começou com a assinatura, mas depois passei a não conseguir escrever qualquer coisa que fosse. No Fórum, cheguei a levar processos para dentro do banheiro. Dr. J me disse que tinha pacientes empresários que jamais preenchiam papéis e, ou também, assinavam papéis em seus escritórios, em suas reuniões, tudo era levado para casa. É preciso jeito para convencer as pessoas, mas um fóbico aprende cedo a arte da sedução, do convencimento.
     A bola de neve que era tão pequena, cresceu. Avolumou-se tanto que ficou maior que eu. Eu me organizava de tal forma que passei a não precisar ir a certos lugares. Eu tinha conta no banco, mas nunca pagava com cheque. Só em dinheiro, cash. O meu inferno era dia de eleição, aquela fila ou a falta dela, os mesários, a espera para que encontrassem o meu cadastro... O meu inferno eu vivi quando trabalhei com uma advogada que não queria uma estagiária, alguém que poderia fazer todos os trabalhos, na proteção da sala fechada, longe de olhares alheios e de gente impaciente nas filas. Ela queria uma secretária, alguém que apenas organizasse os arquivos - fácil -, atendesse os clientes e telefonemas, anotasse recados... mas que também fosse às secretarias do Forum peticionar nos autos dos processos. Ela me dava um pedaço de papel escrito por ela e mandava eu transcrever para os autos. Naquela época, eu sofria por nada, apenas para servir a uma profissional muito esperta, gorda e grande que não podia carregar a própria pasta. Se eu sofresse aprendendo o ofício, talvez sofresse melhor.
     Fiz concursos públicos. Mas, e a prova escrita? A folha de presença teria com certeza um rabisco dizendo que eu estava presente, mas das provas eu não podia fugir. Até o dia em que cheguei à conclusão de que alguns chopes antes das provas, lá na rua, antes de entrar no prédio, ou mesmo uma garrafa  escondida no casaco pudesse resolver o problema. Várias vezes, bebi antes de ir para o local das provas; várias vezes, e me lembro bem, em pleno verão, eu ia de casaco grosso para poder carregar uma pequena garrafa dentro da roupa. Bebia dentro do banheiro. Bebia vodka para não dar cheiro. Mas não adiantava. O meu grau de ansiedade era tão alto que o álcool não fazia efeito. Só me deixava com dor de cabeça. E eu tremia do mesmo jeito.
     Para me livrar das eleições públicas, fui ser mesária. Para mim, era ótimo. Eu passava o dia todo lá e decidia o melhor momento para dizer aos meus colegas: "agora sou eu quem vai votar", logo após abrir o livro de presença e assinar meu nome.
     Escrevendo para você, eu volto ao passado...


Me sinto péssima, inclusive agora. Agora, em que estou longe no tempo e em distância de tudo aquilo. Como eu lhe disse, eu guardei os nossos e-mails, trocados anos atrás, e, me sento aqui, hoje, para transcrever. Nem mais consigo copiar, vou mudando os nossos e-mails porque o tempo passou e o que escrevi antes já não soa tão bom como foi. Hoje, vejo tudo de forma bem diferente. Porém, ficou a cicatriz. Dr. J me falou sobre isso: passaria mil anos e eu poderia tocar a ferida já seca. E eu entendo bem de cicatriz. Tenho várias pelo corpo. Há certos dias em que elas coçam ou ardem e as minhas não se apagam, sequer numa linha branca. E essa cicatriz é a pior, a mais feia delas,  e ninguém pode ver.


     Para que tudo? Para que todos os meus esforços? Será que foi o carrasco da dona E. ? Será que foi herança genética? Será que nasci com defeito de fábrica? Será que houve culpados? Será que fui culpada sozinha?


Desde ontem, eu estou feliz. Sabe aquela felicidade que não dá para esconder? E que você nem quer esconder? Hoje, enquanto caminhava na calçada da praia, eu chutei pedras e coquinhos de tanta alegria. O mar até acompanhou, ele estava naquele tom do Brasil, azul-esverdeado... e batia cheiro forte de maresia.  Mas agora estou triste. Às vezes, você não sofre apenas porque você parou de se lembrar, não que tenha esquecido. Mas agora eu lembrei muito. Refiz partes do passado... Eu poderia parar por aqui e não continuar a contar essa história, mas sei que um dia, já bem velha, não me perdoarei. Estou aqui e tenho que estar por mim mesma, para jogar aos ventos a minha antiga dor. Quem sabe os ventos possam levar ajuda a quem precisa... quem sabe?!

segunda-feira, 10 de maio de 2010

II - Dezembro de 2005


     Este e-mail, eu não lhe enviarei. Ficará guardado junto aos tantos outros que escrevi, mas que também não os remeti a você. Porque você já não me responde mais, há tempos. Porque você, numa madrugada, me enviou um singelo e-mail, após anos separados, e pediu que eu o aceitasse de volta, que um amigo havia encorajado-o a me procurar, ao ver que você estava com as calças "borradas". Você disse que já havia abusado muito de mim, com os seus eternos sumiços e reaparecimentos, mas queria que eu o entendesse novamente, porque fui sempre (e disse que eu ainda era) mais corajosa que você. Disse ter sonhado comigo. Havíamos nos encontrado por acaso numa praça, e, eu com o mesmo cabelão da época da faculdade, bonita e sorridente. Você, triste. Sobre o que conversamos, você acordou sem se lembrar, mas quis me encontrar de novo.
     Você queria me enviar um e-mail longo, contando as últimas novidades ou a falta delas, já que estava tudo no mesmo. Mas disse que ia esperar um sinal meu. Se não houvesse resposta, era porque eu não queria mais nada com você.
     Pediu meus números de telefones e meu endereço. Enviou-me os seus. Perguntou pelos meus pais, minha irmã e meus gatos; por R e meu filho. Perguntou se eu continuava morando no Gutierrez, perto da pracinha.
     Disse ter me achado de novo através do meu irmão. Que, um dia, você viu a foto e o nome dele no Orkut de um amigo seu e aí pediu meu e-mail a ele. Pediu meu e-mail e eu o aceitei de volta, pois li que "amizade é matéria de salvação"e eu sempre gostei de você e naquela época eu andava com muita gente, mas só. Mas há tempos eu venho lhe escrevendo longas cartas, mil linhas enquanto dirijo pela cidade, enquanto tomo banho e me deito no sofá da sala para apreciar os quadros nas paredes, ou seriam os lustres?, as fotos ou o nada mesmo? E vem você então me assombrar (ou seria encantar meus pensamentos?) e eu queria lhe contar o meu dia-a-dia, meus medos que voltaram, mais brandos, mas voltaram. E que eu ando com o coração pequeno, do tamanho da minha pupila, apertado de medos e meus olhos se molham, mas eu não choro, não me permito. Porque ando vendo o mundo e as coisas do mundo muito grandes, maiores do que posso aguentar. Porque ainda não venci a minha primeira recaída. Escrevo as longas mil linhas porque não posso lhe ver, olhá-lo nos olhos e abrir a cortina da minha vida, mostrar o que tenho de belo e de feio. Escrevo mil linhas já que não posso lhe dizer uma só palavra.
     Ando pensando em fazer uma pira com as trezentas folhas de papel impressas de nossos todos e-mails que trocamos desde aquela madrugada. E não havia falta de tempo para nós. Nós nos comunicávamos como num ritual ou mesmo uma obsessão. Eu esperava por seus e-mails todos os dias e ficava triste quando não vinha nada. Você falou do seu casamento desfeito, da sua nova namorada, dos fuscas que insistia em comprar, reformar e vender incansavelmente. Sua eterna mania! Disse que eu tinha todos os motivos para lhe mandar para o inferno, mas que, no entanto, ainda respondia à mensagem sua depois de tanto tempo. Ah!, você sabia que eu não o procuraria mais, sabia que agora era a sua vez. Você se sentia infeliz porque dizia ter feito tudo errado. Brigou com todos por causa da sua mulher, principalmente comigo. Porém, eu prezo uma antiga amizade, pois traz junto aquela linha que nos une ao todo de nós mesmos e eu o aceitei de volta.
     Eu queria fazer uma fogueira com aqueles papéis. Um dia fomos colegas de carne e osso e eu o admirava, em silêncio, e você a mim com alarde, e você achava que eu era o máximo, a forte, a valente. Aquela que conquistaria quem e o que quisesse. Você via a falsa. Agora, fomos amigos virtuais, pouquíssimo contato e muita verdade, mas você se foi novamente, enclausurou-se no seu silêncio. Sumiu. E esse papéis me incomodam. Ando com eles numa pasta preta, fechada com zíper e não sei onde guardá-los. Quase todo dia, arrumo um lugar novo para deixá-los, mas eu queria queimá-los. Mas penso que posso vir a me arrepender. Posso apagar o que está salvo no computador, mas me falta coragem, me falta energia para descartar você de vez da minha vida, até dos meus guardados. Então escrevo mais cartas. Umas imaginárias, outras reais que jamais serão enviadas.

I - Abril de 2004

                                                       

     Um dia qualquer, de um mês qualquer de 1983.
     Eu estava com dezessete anos, fazendo o terceiro ano científico e fui a uma loja de roupas, da amiga da minha mãe, no bairro Sion. Era mesmo um dia qualquer, nada de especial por fazer, a não ser comprar algumas roupas para mim. Escolhi algumas peças e depois de colocá-las numa sacola, a vendedora me mandou assinar uma nota promissória.
     Quando morávamos no interior, meus irmãos e eu só comprávamos assim, mediante assinatura de uma nota, mais tarde meu pai ou minha mãe fazia o pagamento. Mas, naquele dia, meu coração bateu com mais força, socou dentro de mim, como se eu tivesse acabado de levar um grande susto. É, é isso: posso resumir tudo em um grande susto. Eu olhei para a folha de papel como se olhasse para um bicho muito ameaçador. Senti medo ao pegar a caneta e encostar o pulso no papel sobre a mesa. Comecei a escrever meu nome bem devagar; no segundo sobrenome, eu queria sair correndo, largando tudo para trás; no terceiro e último, eu não tinha mais controle algum.
     Para a moça estava tudo bem, minha assinatura deveria ser mesmo aquele garrancho. Tremi muito. Por um momento rápido, que para mim, com certeza, foi muito lento, respirei o ar da incredulidade. Parecia tudo irreal, como num pesadelo em que a gente tenta sair dele, mas não consegue. Porque, de repente, minha vida se resumiu naqueles poucos segundos. Pareciam eternos. Porque, de repente, havia alguém estranho me olhando escrever. Fui para casa pasma. Eu havia levado um susto e agido de forma culpada. Hoje, percebo que sempre houve culpa. Culpa ao assinar.
     De volta para casa, dentro do ônibus, eu pensava na razão daquele meu ato medroso e tremido. Só que passou e deixei de me lembrar daquele dia. Porém, não me esqueci.
     Fiz o vestibular, passei, e, no dia da matrícula, na PUC, pensei se teria aquilo novamente, mas não tive.
     Voltei a ter "aquilo", após seis meses de faculdade, quando completei dezoito anos e tirei o CPF e o título de eleitor. A mesma coisa: tremor intenso nas mãos, um forte calor subindo e descendo pela cabeça, uma enorme vontade de sair correndo do local. Sumir. Evaporar. Me vi na necessidade de dar explicações, de me justificar perante o atendente do outro lado do balcão. Impotência. Vergonha. Frustração.
     Não importava a forma com a qual a letra saía, apesar de que, na maioria das vezes, eu tinha que ouvir o comentário do outro lado: "não confere com a assinatura da carteira de identidade." Não importava porque acabava ficando daquele jeito mesmo, eu mentia dizendo estar passando mal e "se você quiser, volto outro dia", com a melhor cara que eu podia fazer, simpática e inocente.
     Importava sim, é claro! Eu não tinha aquela letra horrorosa e não gostava da tempestade física pela qual passava. Será que não dava para ser como deveria ser com todo mundo? Normalmente? Como tomar um refrigerante no bar da esquina. Um ato tão bobo. Comum. Nada de excepcional. Era só preencher um papel e assinar. Apenas isso! E eu não conseguia. O meu dia acabava ali. Eu ficava péssima. Me sentia ridícula. Uma estudante de Direito que se comportava como uma semianalfabeta. Para que tantos livros lidos, tantas horas de estudo? Para quê? Daí, a coisa degringolou. A bola de neve começou a avolumar. Eu já não queria mais passar por aquela vergonha e então comecei a evitar todas as situações que me deixavam daquele jeito: o berço da doença!
     O silêncio foi absoluto. Jamais contei a alguém o que acontecia comigo. Guardar só para mim o problema foi a causa agravante da minha doença. Pensei muitas vezes em comentar com uma amiga, ou com a minha mãe, um namorado, mas eu não conseguia.
     A primeira pessoa que ouviu a minha história foi Dr. J, quando eu havia acabado de completar vinte e nove anos. Muito tempo, muita idade. Muita desilusão, muita ignorância. Muito sofrimento. Pouca realização. Pouca felicidade.