sábado, 29 de dezembro de 2012

É INOCENTE CRER


O inverno pouco a pouco acomoda-se no deserto em que vivo, mas quase nada ainda sei desse frio. Estou bastante reclusa, sentindo prazer enorme no ato de cerrar portas e fechar cortinas. Nada metafórico. Sinto prazer quando minhas mãos descem e lacram persianas. Não é depressão, pois estou bem, apenas hibernando, olhando para dentro. Não! Não se trata de um olhar para dentro, mas sim de um olhar através. Não há espelhos me bastando, meu olhar ultrapassa qualquer reflexo.

Mudei em todos os sentidos e não houve ritual de passagem de ano, seis anos não se passaram, voaram pela janela onde eu só olhava a vida e desejava. Parei com toda a tolice de sonhar, que me perdoem os entusiasmados! Sonhar é grande tolice.

Como se eu tivesse me transportado para outra dimensão e eu nem cogitava sair do lugar... Tenho a inércia dos gatos, movimento-me apenas quando absolutamente necessário. Foi em um 'não sonhar' que eu troquei de capa, pele e tripas. Foi uma decisão sem quimeras, um correr solto de atitudes, o destroncamento de dogmas, o repúdio ao medo, a certeza de que eu tinha a obrigação de sair do lugar, mesmo não havendo aparente necessidade. Nem sei ao certo se foi num dia em que eu olhava a rua pela janela ou se foi no dia em que me deitei num sofá apertado, numa tarde insossa, e fiz uma lista enorme, quase tudo da minha vida, de tudo aquilo que eu já não suportava mais. Não havia sonho, apenas desgosto.

Houve mudança material e geográfica, mas a principal foi o desgarramento. Eu tinha dois grandes sonhos na minha vida. Eu os carregava para todos os lados. Agia em função deles. Dediquei-me a eles, rezei, lutei, chorei, forcei, vivi como lunática, perdi horas no esforço de alcançá-los. Ganhei enfastio. Exauri-me. Tudo me cansou muito mais que os dias mais quentes de um verão no deserto, muito mais que viver nos limites das forças, entre o continuar e o esticar-se no chão, rendida.

Cansou-me a sapiência do desnecessário. Quanta coisa fazemos desnecessariamente? A maioria. E essa maioria vem da ânsia dos sonhos. "De tudo o que você imagina não irá acontecer noventa por cento", dizia meu pai, quando eu era uma ansiolítica menina de 18, 19 anos, filha de um também ansiolítico, com certeza, ele estava sabendo o que dizia.

Desnecessários sonhos! Pesaram-me como as trouxas de roupas das lavadeiras que eu via passar. Aquelas mulheres fortes, de corpo em riste, olhar ao longe, passo firme, cabeça erguida...

Houve o mérito, mas o prazer do desprender-se do peso é absurdamente maior. Era tudo muito precioso para mim, vital, hoje, só lembrança. Recordações do tempo inocente da crença.

É inocente crer, porque é entrega cega. No meu caminho sem volta larguei a trouxa, a ladainha dos pedidos, o próprio caminho. Eu ainda creio, mas não sonho, não traço mapas, não aspiro, apenas vivo, e, apenas viver é sempre mais leve e livre.

Por Suzana Guimarães

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

EU ESCREVO NA PRIMEIRA PESSOA DO SINGULAR

Suzana Guimarães - arquivo pessoal



Eu poderia ter feito melhor, ter sido mais ao invés de alheia. Eu poderia ter me dedicado, não pense que eu não penso sobre isso! Só que, tudo o que eu pude fazer, eu fiz, o mais era para outra pessoa, não para mim.

Meus preconceitos, eu sempre ocultei. Não preciso expor minhas feiuras ao mundo, já basta o tanto que elas me incomodam. E eu percebi bem cedo na vida que haverá sempre um dedo a lhe apontar, uma gente tola que entra na fila sem saber para quê e os 'bostas', aqueles que, com pouca inteligência, conseguem manipular multidões.

Por isso, eu escrevo na primeira pessoa do singular. Às vezes, em alguns contos, uso a terceira pessoa, 'ela' ou 'ele', por causa da dificuldade que tenho de escolher nomes fictícios. Junto ao crescimento da comunicação caminha a reafirmação do hipócrita. Tudo o que se escreve ou se fala passou a ser severamente visto de forma genérica ou não política e ecologicamente correta. O meu 'eu' cala a tua vez, é isso o que faço.

Quando dizem para não sermos preconceituosos com os negros e homossexuais, estão incluindo também por opção política, religiosa e por nacionalidade? Não é o que ando vendo. O que vejo é gente levantando bandeira para o que lhe é proveitoso. Dentro dos preconceitos que carrego em absoluto segredo, eu tive um que expurguei de mim faz longo tempo. Muito antes de pensar em viver nos Estados Unidos, consegui perceber por 'n' motivos que se apresentaram, que eu era uma tola generalista. Eu não comprava produtos americanos, eu não bebia Coca-cola. Eu não iria à América nem a passeio.

Hoje, não troco muitos americanos por muitos brasileiros e vice-versa. Não considero nenhuma terra, terra de maus ou bons. Alguns brasileiros vivem aqui há anos e só sabem falar mal do país, e eu me pergunto o porquê deles não arrumarem as trouxas e retornarem ao Brasil.

Não aplaudo dias e nem cotas especiais. Entendo que, dizer que um cabelo é ruim significa que ele é ruim de pentear, de fazer penteados, e, não, nunca, ruim de mau ou feio. O cabelo da minha mãe é extremamente liso e ela sempre reclama que ele é ruim de pentear. Chamo o meu filho que é muito branco de ' meu neguinho', porque rima com o sobrenome dele. É mais fácil identificar alguém referindo-se à alguma característica física. Ele é negro, não é? Ela é branquela, não é? Para mim, dizer que fulano é gordo ou baixinho ou tem a cara torta é o mesmo que dizer 'aquele de olhos verdes, aquela de cabelos encaracolados'.

Para os brasileiros, se o cara tiver olhos puxados é japa, de japonês. Quem é que eu quis ofender? Ninguém. É hábito, é costume, não é maldoso, mesmo que não seja 'correto'. Outro dia, eu disse: "Você encontra muitos mexicanos na porta da loja." O filho de uma mexicana não gostou e me repreendeu, disse que eu deveria dizer 'latinos'. Não é generalização, não posso saber com certeza a nacionalidade de cada um, e, certamente, a maioria lá é mexicana.

Durante seis anos, a minha vizinha, uma mulher na casa dos quarenta, me chamou de Silvana e durante seis anos, eu a atendi. A minha avó trocava meu nome com o da Simone, e nós a atendíamos. Quando preencho algum documento, tenho que marcar com um 'x' a minha raça. O Consulado do Brasil recomendou optar por 'other'. Eu sou 'other' e isso não me afeta em nada. Outro dia, uma colega me perguntou se eu me considero latina, respondi, "claro, sou da América Latina". Não entendi a pergunta e também não me deu a mínima vontade de perguntar o por quê.

Uma brasileira que conheci na faculdade de Inglês arrepiou-se toda quando eu disse que não gostava do Cazuza. Olhou-me incrédula, disse que era um absurdo. Absurdo é alguém se horrorizar com isso. Vejo um excesso de preciosismo por aí.

Bem cedo na vida, meu pai me disse: "não levante bandeiras, minha filha, isso é tolice". Certíssimo, a bandeira levantada haverá de se voltar contra você quando ventos mais fortes ou sedutores tocarem-na ou a ti.

Na minha turma da faculdade de Direito havia uma ladra. Ela furtava, todos desconfiavam dela e ninguém dizia ou fazia nada porque "calúnia é crime", diziam, e ela continuava raposa esperta. Um dia, ela furtou a minha carteira. Eu interrompi a aula do professor para pedir para reclamar, ele me repreendeu, saí da minha carteira e em pé, em frente aos colegas, perguntei que espécie de advogados eles seriam. Olhei para a turma do 'deixa disso' e para os hasteadores de bandeiras, perguntei se algum deles iria comigo até o chefe de departamento. Fui sozinha. No dia seguinte, tudo que havia sido furtado foi devolvido, inclusive a minha carteira.

Quem tem bandeiras para hastear, que o faça, mas, por favor, não queime sutiãs, isso é ridículo. Atos barulhentos em praça pública não bastam. Levante a bandeira, mas tenha coragem de deixá-la encostada num canto de parede para ir à luta, à briga, à ação. Seja coerente e respeite os direitos alheios, saiba pelo quê está protestando ou reivindicando. Não seja mais um que só aguarda o momento propício para ter seu dia de abutre, não aumente a fila da corja.

Uma banda russa, de música, composta por três mulheres, decidiu protestar contra o governo dentro da principal catedral do país, em meio a um culto. Foram presas por vandalismo; após a prisão, pediram desculpas ao público religioso presente naquele momento. Foram condenadas e muita gente se abalou contra, o que vejo com bons olhos, a humanidade está atenta. Considero a pena de dois anos muito alta, desproporcional, mas, por que essas criaturas não foram protestar em lugar mais adequado?

Burrice e alienação mental não são transmissíveis, graças a Deus, mas preconceito é. Aquilo que você mais condena baterá à tua porta, esteja certo disso.


Por Suzana Guimarães

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Eu preciso de apenas um para me carregar no colo, dez mil não me carregaria​m.

Fotografia, por Suzana Guimarães


Ele diz que ora sou T'pol, ora Rainha Branca. Não importa, só sei que ele me ama. Ele diz que há um molhado eterno em meus olhos, ele se preocupa, mas é brilho... Ele sabe de mim, mas ele é único. Sou desenho abstrato demais e ninguém quer me ler. Ele, não, com desembaraço, ele para o olhar, fixa em mim, respira-me e entende o desenho: um rosto, ou dois. Uma ave ou o perfil de um homem. Uma velha ou um chapéu. Ele relaxa o suficiente e me vê, sem esforço, ele nasceu assim, ele nasceu assim para ser assim, meu! E eu dele.

Eu poderia chorar por todos que não quiseram me entender, eu poderia me deixar prostrar, porém, não preciso de muito, quem carrega muito nunca tem braços suficientes, nunca tem condução adequada, nunca está pronto, está sempre fazendo ou por fazer.

Eu não irei chorar porque concordo com o Nelson*, "toda unanimidade é burra". Dez mil me detestaram, um, amou. Há ímpares que bastam, dispensam pares, somos assim. Nem somos par, somos extensão um do outro, continuação da obra do artista, ora eu represento a terra, ora ele representa o céu e vice-versa. Não há nada para acrescentar ou melhorar, é o que é e ponto. Ele diz que opiniões alheias, ele dispensa, tem as próprias, o gostar dele independe de qualquer outro. Com certeza, ele manda a unanimidade às favas.

Eu preciso de apenas um para me carregar no colo, dez mil não me carregariam.

O amor acaba quando a gente precisa desenhar para o outro entender. Vai ver, a gente nem estava amando e sendo amado, apenas desenhando. Ele dispensa também o desenho, qualquer um que seja, fica aflito quando eu quero fazer algum esboço, mostrar que o traço saiu errado e que precisamos ajeitá-lo. Ele faz um sumário, antecipando que é sumário, poucas palavras para encerrar. E diz: "pulemos".

E assim vamos nós, pela milionésima vez nesta vida, juntos, ora eu rainha, ele conselheiro; ora ele, rei, eu, fiel escudeira. Sabemos o que é guerra e paz, mas dispensamos também conceitos. Amor não se desenha e nem se conceitua, se respira.


Por Suzana Guimarães

* Rodrigues

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

UMA CARTA PARA UMA AMIGA, sobre tesão de ser gente, ou não

Novembro Longo 15, 2012.
                                       

Querida F.,

Naquele Café, eu sentia o teu vazio triste encostando-se em mim, embora você estivesse do outro lado da mesa. Ah, F., do lado de cá, digo-lhe que não adianta onde você esteja e nem com quem esteja, teus olhos brilharão muito melhor na medida do querer do outro. Bom, e aí você me diria, "mas você sempre diz que felicidade é estado de espírito". Sim, é. Mas, eu seria muito tola se negasse a força do outro sobre nós.

Naquele Café, eu não estava feliz, muito menos desinfeliz, eu apenas guardava nos bolsos do casaco um punhado de esperanças. Eu queria muito passá-las para você, mas teus olhos buscavam o nada, ou os carros que passavam do outro lado da rua, alheios.

F., onde estão elas, as esperanças? Sachês perfumados que eu carregava... e saía por aí, distribuindo-os. Fiz isso gratuitamente. Engano! Fiz, não! A gente age querendo a troca, o compartilhar, querendo ser do outro e tê-lo como nosso, em brevidade ou para sempre, porque não somos pessoas geladas, temos tesão pela vida. Temos o dom da gargalhada, o calor de todos os desejos. Temos a ânsia; o querer muito, quase insano.

F., há um quê de desbotado em alguns homens, não se esqueça disso, não dê cor a eles, se eles não puderem entender tua aquarela. Há quem viva em preto e branco. Alguns, com o passar do tempo, vão-se acinzentando. Cores da morte, o preto e o branco, cor do vazio, o cinza.

Há quem não queira a vida, F., há quem se senta no rabo e vive a cutucar o nariz. De vez em quando, dá uns saltos, cai no mesmo lugar, e volta a colocar o dedo n`algum orifício, para gozar sozinho, porque, compartilhar significa dar e muita gente não quer dar nada porque dar dá trabalho. Dá trabalho fazer a oferenda, melhor é esperar a primeira barata que passar para comê-la. Mais fácil. Alguns, mais tarde, reclamam que na terra deles nunca choveu...

Descobri que eu perfumei em demasia alguns. Ah, e eles foram felizes! Extasiados, lambiam-me com os olhos, cheiravam minha chegada, aguardavam por ela. Nunca dentro deles houve tantas batidas de tambor! Entreguei os sachês, dei-lhes meu melhor sorriso, promessas que se cumpririam antes do amanhecer. E havia sempre orquestra e festa. E havia eu. Não sou mais linda e nem mais esperta, sou gente. E, sendo gente, posso ofertar amor. Andaram lhe ofertando amor, F.? Sei, eu sei, na medida deles, na medida entre um salto e uma cutucada no orifício.

F., este novembro se faz longo e ingrato, mas não é o primeiro deles. Estou com alma alquebrada, recolhida, ainda sentindo os ventos gelados com que me presentearam, justo quando eu imaginava estar montando cenário de festa.

Conheci homens que maltratavam falando palavras doces, eu, tão tola, dizia palavras ásperas, amando.
                                                                
Beijos,

Por Suzana Guimarães

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Sobre a importânci​a das coisas

 

 
 A importância era uma pedra que eu carregava para todos os lados, imaginando-a preciosa. De tão bem guardá-la, por ser bem inestimável, eu a perdi, pois me esqueci de onde a deixei.
 
Suzana Guimarães

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

EU NÃO POSSO LHE ENTREGAR FLORES


                             
Estou deitada. De frente para mim, apenas uma parede branca e uma porta que dá para um banheiro. Estou na suíte. Tive sorte, quarto com televisão e banheiro! Porém, a suíte é de todos, ou melhor, o banheiro. Meus colegas passam em frente à parede branca, empurrados em cadeiras de rodas na hora do banho. Não posso me mexer muito porque doem as costas. E eu já estou cansada disso. Queria exercer o direito ao decupido: uma hora de cada lado,como diz o bilhete pregado na parede ao meu lado, outra parede branca. Atrás de mim, um aparelho que faz pi-pi, no meu dedo indicador uma caixinha preta que esquenta meu dedo. No braço, o medidor de pressão que fede. Fede a chulé. Reclamei com o Rodrigo, disse que não suportava mais o cheiro. Ele tentou resolver o problema passando álcool, mas a catinga continua. Ele disse que vai tentar arrumar um novo, mas que não encontrou nenhum no estoque. Eu quero um novo, Rodrigo, porque fico pensando que estou fedendo, que o banho na cadeira de rodas não foi bem executado. Odeio esse fedor!

Eu queria lhe entregar flores, hoje que é seu dia, mas não posso sequer me mexer. Uma dor fincada feito agulha grossa me espeta, alucinante. Não deixo que mexam em mim, não aceito fazer xixi na comadre porque meu corpo não pode ser erguido. Se me erguerem, grito. Prefiro me levantar com ajuda da Rosa e bem lentamente descer da cama e ir ao banheiro. Depois o suplício: fico entre a cadeira de rodas e a cama, pendurada parte em uma, parte em outra, porque qualquer movimento dói. Presto atenção no meu respirar. Uma aspirada. Uma parada. E pronto, posso soltar o ar. Esse exercício ajuda a abrandar a dor. Feito, posso me deitar. Deixo meu corpo se encostar como pode na cama e espero vinte, trinta, não sei quantos minutos para voltar ao estado normal que é o sem dor.

Com o tempo olhar as paredes vira hábito e é até bom. Aqui, não tenho problemas. O telefone não toca, nem a campainha com a minha vizinha me pedindo dinheiro emprestado. Aqui, ninguém me pergunta nada. Nada de “o que vai ser para o almoço, hoje?”, “posso ir ao banheiro?” , “a porta emperrou não abre, o chuveiro está pegando fogo”, “o bolo no forno está crescendo e derrama para os lados e o porteiro interfonou perguntou que cheiro de queimado é este”. Aqui, só me perguntam se há dor, se não há. E falam todos os dias que amanhã receberei alta. Eu bem que tentei saber para onde a janela que está atrás de mim se abre, apesar de estar sempre fechada. Rodrigo diz que não importa, que dá nos fundos de um prédio feio, que o dia lá fora está lindo! Todos os dias ele me deixa atualizada quanto ao tempo.

E eu que pensava que uma Unidade de Terapia Intensiva era feito uma capela de tantos silêncios. Pensava num lugar onde se conversasse aos cochichos. Onde os passos eram macios e reinava a quietude das pessoas e coisas. Doce ilusão!... Eu também pensava que havia UTIs para malucos. Não sei de onde tirei essa informação em mim mesma, não me lembro de ter ouvido ou lido nada a respeito, de que doido vai para hospital de doido. Mas não. Os loucos de todo o gênero ficam lado a lado com a gente. Dona Iolanda é a prova disso. E eu não posso rir. Estou proibida, mas a doida não se controla e tão pouco conseguem controlá-la. Meu médico me visita todos os dias e diz que estou terminantemente proibida de rir e falar. Ele diz que cada vez que faço uma coisa ou outra, o sangue que se esparramou pelos meus pulmões caminha mais para dentro, vai cruelmente invadindo o colchão macio deles. E eu nem sabia que tinha pulmões! Eu sabia que tinha apêndice e vesícula e também coração – porque meu coração às vezes dói de tristeza – mas não havia me dado conta dos pulmões. Agora, sei muita coisa sobre eles.

Pois é, dona Iolanda está na sala comprida ao lado da minha suíte. Como eu disse, estou na suíte, dei sorte! Mas a porta fica aberta dia e noite e eu tenho medo dessa doida. Ela tira as cobertas que colocam sobre o seu corpo, na verdade, tira tudo, tenta, inclusive a camisola até que alguém chegue. E ela canta hinos e músicas. Canta alto e bem, é até bom ouvi-la. Mas na maioria das vezes, ela tem que ser amarrada na cama porque ela se exalta muito e o canto fica choroso e os fios não ficam mais presos em seu corpo. Ela arranca tudo e chupa a caixinha preta do dedo indicador, a mesma que eu uso.

Rodrigo me deu dois presentes: um medidor de pressão novinho em folha e um telefone celular proibido. Ele fechou a porta da minha suíte, mostrou-me o aparelho, perguntou o número e esperou a ligação se completar. Ele sabia que eu precisava muito ouvir a voz do meu filho. Ele sabia que meu menino precisava ter certeza de que eu estava viva. De coração, ele correu o risco de ser pego pela médica de plantão, uma onça de brava a médica, e me deu alguns segundos de puro prazer. Ofereci pagar a ligação, mas ele se recusou. Disse que já estava pago, o meu filho estava feliz.

Dona Iolanda me põe medo. Ela já me viu deitada, estou quase de frente para ela, um pouco mais para a esquerda porque tem a parede que divide os quartos. Mas ela me vê e isso me incomoda. Acordo de madrugada com medo de estar sendo esganada por ela. Ela pode achar que sou uma inimiga. Ontem, ela pediu à enfermeira para mandar parar o ônibus porque já tinha chegado no seu ponto. Karine, a enfermeira, perguntou se ela tinha dinheiro para pagar a passagem, ela disse que a colega do lado ia fazer isso.

Hoje, à tarde, o maior rebuliço. Uma agitação só e eu não sabia até então que também já virei estandarte de escola de samba por alguns minutos. Quem chega, chega deitado na maca de rodinhas, é passado para a cama numa tábua e em volta meia-dúzia de enfermeiros a observá-lo. Eu me lembro de ter visto muito branco e muitos olhos, ouvido um falatório... A agitação toda, de hoje, é para o quase-suicida que chegou. Os mais parrudos enfermeiros custaram a dominá-lo; ele deu sopapos em um ou dois. O cara é forte. Grande e gordo, o corpo parece cair pelas bordas da maca. Custaram a transportá-lo para a cama. No fim, ficou amarrado e de fraldas brancas. Coitado, me disseram que é empresário, coitado, se ele se visse... eu via porque fiquei longo tempo com a minha cama na posição sentada. Não para vê-lo apenas, mas para ficar brincando com o controle remoto da cama. Eu desço e subo a cama o dia todo. Faço essas gracinhas porque minhas dores estão bem controladas. Essa minha diversão só perde para a melhor que é olhar as paredes brancas. Bem assentada no meu leito, posso olhar para ele. Não tenho implicância com remédios. Doeu, eu chamo alguém para me dar algum analgésico. De dores, bastam as da vida! O infeliz tem o nome do meu filho e eu acabo sentindo pena dele. Penduraram um saco no corpo dele, que fica caído para o lado, sempre cheio de um líquido preto. Eu me inteiro do assunto: aquilo é carvão que circula pelo corpo dele para lavar, retirar a causa da quase morte: não sei quantos comprimidos para dormir, um punhado, o suficiente para derrubar o grandão. Ele quase morreu, comentaram comigo. Chegou muito mal, demorou a ser socorrido. Três mulheres loiras o visitam sempre e choram muito. Um enfermeiro fica parado diante dele por mais de hora monitorando a maquininha que ele tem igual a minha. A dele está sempre desgovernada. A minha está tão monótona que eles nem se importam mais quando ela desliga sozinha. Eu chamo, chamo, para fazer festa no quarto, mas custa a aparecer alguém. Também pudera, estou aqui há dias.

Foi a Camila quem me contou dos suicidas. Meninas que querem chamar a atenção dos namorados costumam passar por aqui, principalmente nos finais de semana. Elas bebem chumbinho com refrigerante. Eu nem sabia o que era chumbinho. São aquelas bolinhas cinza-chumbo que matam ratos. Camila me contou de um rapaz que soltava espuma pelo saco de plástico preto. E a cama dele cheirava muito bem. Ele bebeu todo o material de limpeza da casa depois que a mulher o deixou: detergente, desinfetante, álcool, sabão de coco líquido e todo o resto. Saíam espumas do moço. A limpeza do cheiroso durou semanas, ela disse.

Disseram-me que dei sorte. Dias de quietude por aqui. Mas eu não pude mais suportar dona Iolanda, minhas madrugadas tranquilas estavam sendo perturbadas pela perturbação dela. Eu, às vezes, acordava com música alta, a danada cantava bem... e eu até gostava. Mas, aproveitei que era dia de plantão da médica onça e dei o berro: eu pagava convênio de saúde caro e não podia aceitar a doida na minha frente. Que a tirassem de perto de mim, porque eu já nem dormia mais por conta dela. Empurraram a cama da doida para o outro canto da sala comprida e ela me perdeu de vista. Dona Iolanda era assim chamada, mas era moça, não era velha. Magra, cabelos na altura dos ombros, loira, até bonita! Toda marcada de roxos, e ninguém sabia direito se era autoflagelação ou surra mesmo. Ela vinha de uma casa de descanso. Deram agora para chamar o lugar de casa de descanso!

O que mais me doía era a mãe que teve um bebê e ficou com o peito cheio de pedras. Eu também não sabia que isso era caso de terapia intensiva, mas o Cláudio, enfermeiro, disse que o hospital era uma maternidade. Então, por que não levar aquela paciente para lá? O bebê passava bem na incubadora, mas a mãe pedia aos gritos que parassem... Todo dia, várias vezes ao dia. Eu me endurecia na cama. Ficava que nem pedra. Parecia som de gente torturada. As enfermeiras espremiam os seios dela para desmanchar as pedras. E ela urrava. E eu também, em silêncio. Vivi aquela tortura por muitos dias, até que um dia, ela veio tomar banho no meu banheiro. Toda sorridente, sentada na cadeira de rodas, com uma bolsinha contendo xampu, sabonete, escova... preocupada em prender os cabelos. Saiu do banheiro melhor que entrou. As mães são assim: possuem uma capacidade de esquecer dor que não dá para entender.

A minha dor diminuiu, mas ainda incomoda muito. Passo o dia tossindo e tomando água. Eu nada mais sei do mundo lá fora. E nem quero saber. Penso nos meus filhos e só. Sei que estão bem e relaxo. Minha cunhada falou que são minhas férias, nada para fazer, preocupar, posso dormir o dia todo. Eu queria mesmo é poder dormir de lado ou de barriga para baixo, mas a dor não permite. Eu estava no refresco da morte. Saí de casa à noite, com o corpo dobrado em dois, sentindo dor ao falar e ao respirar e sem saber que doendo não se respira e se não se respira, morre-se. Mas como eu disse eu estava no refresco da morte. Ela só fez gracinha, borrifou-se em mim, igual no colégio do meu filho, na época de calor. Um arzinho de água, pouca coisa, nada que molhe o suficiente. As tranqueiras da vida passaram perto, mas houve um lugar por onde passou oxigênio. E eu pude levantar a cabeça e sentir o refresco. Só quem conhece a morte, sabe o que é o refresco dela.

Penso em você. Hoje é seu dia e eu não posso lhe entregar minhas oferendas. Flores, beijos... Hoje, talvez, eu lhe entregasse minhas lágrimas e a honra de ter passado pelo corredor escuro, mas resistido bravamente. Eu aprendi a ser uma pessoa resistente. Descobri que ser forte não é um dom, é uma conquista.

Por Suzana Guimarães

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Eles sabem para onde vão, por isso correm. Eu não, eu não sei para onde estou indo, por isso vou devagar.


 
(Fotografia, por SCG)
 
 
Eu nunca soube de cor o número do meu CPF. Aos vinte anos, eu tentava imaginar o que estaria fazendo ao completar 40 anos, só porque eu deveria renovar a minha carteira de motorista. Decorei três números de telefone, o da minha mãe, um do meu irmão e o meu. Atualmente, paro antes para me lembrar do meu. Outro dia, perguntaram-me, num estacionamento, qual o número da placa do meu carro, eu respondi que não sabia, ela, a moça que cobrava a permanência, que olhasse. Porém, recordo-me das datas de aniversários de amigos do passado, gente que nunca mais vi e nomes de ruas nas quais morei. Meu espelho é sempre a minha última fotografia, por ela vejo o que mudar ou não em mim.

Percebi que eu tinha os olhos tristes, apaixonados, perdidos. Percebi isso ao rever velhas fotografias que resgatei de dentro de caixas. Mas, eu nunca fui triste, eu tinha tristezas, apenas isso. Apesar da minha dificuldade para decorar números, sou ótima para saber de mim, mesmo quando finjo o contrário. Pois então, eu sei muito bem o que quero, eu sempre soube. Ou melhor, eu sabia.

Hoje em dia, qualquer vento pode me fazer cócegas e muitos dos meus princípios mudaram de endereço, perderam-se nas decepções da vida. Para que tanta definição de si mesmo? De mim mesma? Para merda nenhuma, que me perdoem o bom uso dessa palavra! Para que a minha eterna tabuada, pregada na barra da minha saia para eu colar de vez em quando e fingir que sou mestre?

Eu sei quem sou eu, sei, sim. Hoje, eu sei o que me faz feliz e que não faz. E só. Basta! Não preciso mais do que isso. Outro dia, conheci um menino que me fazia sorrir, conheci três, conheci dez! Entretanto, todos, em um determinado ponto, pararam de me fazer sorrir e, eu, muito tonta, continuei sorrindo para eles e traçando mapas para nós, delirando... Revejo esses meninos, revejo-me e nada mais encontro porque eu fui ali, saí, larguei o que eu carregava em cantos quaisquer, desfiz as magias tolas e fui ser feliz. Simples. Minha felicidade é o meu corpo, que cuido; minha alma que preservo, e minha inteligência, que me salva.

Eu não sei mais para onde estou indo, o GPS pifou. O mapa? Eu nunca soube mesmo para que lado posicioná-lo. A agenda de telefones? Demoro um ano para atualizá-la, estou sempre um ano atrasada, enquanto todo mundo corre. E todo mundo se espanta, ainda tenho agenda de papel. Ainda tenho tempo de me perder porque parei de dar importância ao traço do compasso. Nunca fui boa mesmo em aritmética, nem em ritmo e equilíbrio, tenho Labirintite, não aprendi a tocar piano e a andar de bicicleta. Só acertei o alvo quando gritei 'este, eu quero', e isso ocorreu poucas vezes. Durmo antes do terço acabar, ladainhas são soníferas... Minha reza é apenas uma conversa, às vezes, íntima, às vezes, nem tanto. Sempre houve em mim um quê de distração pelas coisas, desejos e pessoas... o que eu sempre soube fazer foi levantar voo; me dê uma razoável tranquilidade e eu já não estou mais onde você pensa que estou.

É que todo mundo corre porque já quer chegar. Eu estou sempre indo.
 
por Suzana Guimarães

domingo, 4 de novembro de 2012

(...)

(Suzana Guimarães - arquivo pessoal)

 
Há mais peças dentro da mala do que fora, nas gavetas.
Ele as dobra de forma lenta, ele está de partida, sem desejar por isso
É noite, eu olho o céu, penso nele.
Eu me calo
Assim igual a ele, que se calou faz tempo
Ele está indo aos poucos, em passos curtos
ele prolonga o tempo
Eu me calo.
É noite, eu o vejo por entre os mundos
através da ferida que se abre em mim
Eu o olho, imóvel estou
Nada posso fazer
Ele nem sabe mais quem sou eu
Mas eu sei quem ele é.
 
Por Suzana Guimarães

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

PARA PENSAR


 
Quando você tiver tempo para mim, eu irei sorrir, distante. Tenho ido à Monrovia, onde eu teço longas tranças, largas ou estreitas, sedosas... O tempo lá alcança-me, abraça-me e me diz que a gente só entende, quando a gente para. Querendo ou não, sou obrigada a estar lá, e venho aprendendo a arte dos sorrisos internos, independentes, livres. Durante cinco dias da semana exercito a ciência da espera calma, aprendo que uma certa organização sempre se faz necessária e, em Monrovia, eu venho entendendo que você apenas me desorganiza para nada. Você quer o nada e o tempo na Monrovia também nada quer, apenas se faz presente. Então, eu vou praticando até o dia em que você chegará, mais uma vez, e eu irei apenas sorrir, distante.

Por Suzana Guimarães
 

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

ELE, A LIBIDO E EU

 
(fotografia, por SCG)
 
 
Eu queria um tempo para poder entender, eu queria escrever cartas, enviá-las e aguardar o retorno. Eu queria pregar alguns botões de roupa, cheirar o perfume que comprei... mas, compreendo que o tempo todo do mundo não seria suficiente para meus cálculos infinitos, um tal de dois mais dois são quatro. Não escrevo cartas, envio mensagens rápidas por telefone, não cumpro promessas e não vejo outras tantas alheias serem cumpridas. Ando me deixando por aí, naquele aeroporto onde fiquei em desalento; no consultório da dentista; naquele cinema que fui com a minha mãe; no estacionamento da faculdade - realmente, cismei com o lugar, como se eu caminhasse no deserto nu.
 
Ando me deixando aos poucos, e eu queria mesmo era andar toda compactada. Eu queria ser um tanque de guerra, mas os ventos sempre foram mais fortes, desfragmentaram-me em assovios finos, em barulho de balanço, daqueles antigos, de dois lugares, com almofadas quadradas, geralmente vermelhas, em ferro branco, num vai-e-vem cadenciado, criando um barulhinho sem fim, bem compassado... esse barulho, ando ouvindo na academia; as entradas de ar no teto levam-me à varanda da casa da minha avó, décadas atrás.
 
Quando eu caminhava solenemente para ser compacta, um trator, ele chegou.
 
A cor do cabelo dele combina com tom de boate, com casais aos beijos, dançando, na beira do porto, onde eu vi aquela moça levantando cadeiras, varrendo o chão, limpando e parecendo dançar, sim, ela parecia dançar. Só se via o que as cortinas de plástico transparente permitiam... a balsa ia ao longe e ao longe eu fui atrás dele. Pergunto-me se ele poderia sentir que eu dançava com ele.
 
Ontem, fritei bifes. A cozinha ficou impregnada de óleo e carne, mas eu pude sentir o cheiro dele, assim que me abaixei no chão para pegar uma panela no armário. E eu pensei no tanto que tudo pode ser não crível e por isso não entendível. Não é um cheiro que se compra nas farmácias ou lojas, nem se fabrica no balcão da pia, nem é ofertado pela natureza. Não é o cheiro da recordação, do perfume do primeiro namorado ou das merendeiras escolares. É o cheiro dele; que sinto quando o toco e depois, disfarçadamente, tento gravá-lo no olfato.
 
A moça limpava a boate de quinta categoria para a noite que se anunciava - e eu fui até ele, em pensamento.
Ontem, ele se aproximou de mim?
Naquela balsa, eu teria todas as palavras do mundo para ele, ou somente um convite para nos arriscarmos naquela espelunca. E eu poderia então enfiar meus dedos naqueles cabelos, puxá-los, me apertar contra ele, boca na boca, aspirando aos pouquinhos a sua pele que me fascina. Ou seriam os olhos, o corpo todo?
 
Eu não sei bem se ele se aproxima de mim ou se sou eu que, sem tempo, sem romance, sem sexo, sem namoro, sem risadas na madrugada, sem libido e grito oscilo entre o tanque de guerra e o vento, entre ser e morrer, entre o que se queria e o que realmente se tem, naquela mesma distância da balsa para a boate, que só aumenta e se vai.
 
Por Suzana Guimarães

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

SOBRE ELE

  
Ele é como um livro que já li, lembro-me  de certas partes da narrativa, e, por isso, eu poderia pular certas falas, por já conhecer. Ele traz o aconchego da certeza de que sei como termina... mas, eu não me lembro muito bem mais como é esse desfecho, pois, muito tempo se passou desde a última leitura.
Não me é desconhecida a capa dura, as folhas que se viram sem esforço, o segredo da história, guardado no título. Sua pele é folha macia que canta, parece que os poros fazem coro em uníssono, chamando-me. O cabelo em tom mais escuro que o escuro de todas as noites, eu conheço há mil anos, algo me atrai, nas coxas, acima um pouco dos joelhos, na nuca, um pouco abaixo do negro da noite que sorri para mim, convida-me. É mais ou menos assim, olho-o de ponta a ponta, seus poros cantam, os ventos que o rodeiam quando ele passa, assobiam para mim, e o visgo que não se esconde entoa cânticos aos anjos.
Nada queima, não há infernos, há frescor, há sensação de que se alcançou a beirada da praia, quando a lua beija o mar, em prata.
Ele é como um livro e também o recanto macio onde eu posso lê-lo, recostada, em paz. Ele é a paz, a sensação de que tenho a posse de todos os dias, todos os anos, as décadas - sou dona do tempo. Sou o tempo que existe, ontem, hoje e futuro num só, quando por mim, ele passa.
Por Suzana Guimarães

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

QUANTAS GIRAFAS PODERIAM ME SALVAR?

 
Fotografia de Suzana Guimarães - arquivo pessoal
 

Borbulha. A água da panela não borbulha mais que eu, nem o Mauna Kea e o Mauna Loa conseguiram tanto. Borbulhou, borbulha ainda. Ferve. Borbulha sentimento ruim em mim. Borbulha tudo aquilo que você me fez engolir e eu ainda não ingeri. É preciso que o tempo ajude. E eu olho os céus, olho o mar, as ruas silenciosas, as pessoas que passam, só não olho para dentro, porque, lá dentro, aqui dentro, borbulha ainda.

Sou rápida com as palavras, sou rápida no agir. Lenta no sentir. É preciso que o tempo ajude. Mas, outro dia, a minha filha quis comprar uma girafa do tamanho dela. Um balão de soprar preso entre seus dedinhos, que subia, subia ao alto e descia aos poucos, parecendo caminhar. Seguia leve e inconstante atrás da minha filha. Caminhamos até o carro, e eu guardei a girafa no porta-malas. Depois, antes de abrir a porta, para que a minha filha entrasse, eu voltei e abri novamente o porta-malas para guardar minha bolsa. A girafa fugiu.
 
Ela alcançou o cruzamento em frente ao estacionamento do shopping, num voo rápido e leve, dez pistas que cruzavam dez outras pistas. Era sábado, à tarde, muito movimento, muitos carros, eu gritando em Português, desesperada, sem saber se segurava a mão da minha filha que gritava também ou corria atrás da fugitiva. Eu gritava para que ninguém atropelasse a girafa, para que a vissem; ela, que subia e descia, parecia desviar dos carros. Alguns diminuíram a velocidade, outros desviaram.

Ela, a girafa, foi salva, já do outro lado, na esquina em diagonal a mim. Um carro parou, uma mulher desceu e pegou o balão elegante, como toda girafa deve ser. A minha filha ficou contente, eu, também, e a volta para casa foi em meio às gargalhadas - uma pequena vitória do dia.

Borbulha ainda a tristeza por tudo o que você me negou, borbulha o desejo de vigiar tua casa e teus passos, para contar os tombos, só para isso. Borbulha. Sentimento ruim também é para ser vivido. É preciso cortar o pão duro com os dedos, espremê-lo entre os dentes, tentar algum alimento.

É preciso que eu olhe os céus, olhe o mar, as ruas silenciosas, as pessoas que passam, as girafas que fogem, que voam, todas elas, vivas ou não vivas, mas suficientemente capazes de desviar meu olhar para longe e me façam gritar qualquer coisa, mesmo que sem importância, desviar a rota que você desenhou para mim e eu, tola, caminhei em cegueira.

É preciso que fatos ocorram, olhares se cruzem e muitos passeios eu caminhe.

Bomba foi feita para aluno; perdas para caminhantes, ódio, para humanos, mas eu não gosto disso, eu só queria ter te amado. Borbulha o que poderia ter sido amor.

Por Suzana Guimarães
 

sábado, 29 de setembro de 2012

E SE...

(Suzana Guimarães - arquivo pessoal)


E se eu lhe dissesse que fiquei mais forte, mais bela e singela? E se eu lhe dissesse que os dias se tornaram rasteiros ou lentos, no compasso de nossos passos? Que meus passos espreitam os teus, que meus braços pedem os teus? E se eu lhe dissesse que toda a verdade solta à pele, que falo e de minha boca cai líquido desejo?... porque há em ti um vento frio que me acolhe e me chama e me diz que o sol que arde lá fora é momentâneo e só nós eternos, desde que, veja bem, desde que meu corpo esteja próximo ao teu e eu entendo que existe, sim, existem oásis de verdade, um deles és tu.
 
E se eu lhe dissesse que não somos dois, somos um?
 
 
 por Suzana Guimarães

sábado, 22 de setembro de 2012

CARTA PARA LUNNA


Imagem retirada da Internet, por Dulcie Duda, que conhece a arte da delicadeza.



Los Angeles, 21 de setembro de 2012.
 
Querida Lunna,
 
Esta carta começou ontem, mas ficou apenas na data. Minha filha me chamou para brincar. Brincamos por três horas e ela não se deu por satisfeita. Convidei meu marido para me substituir, meus olhos estavam pequenos, semi-cerrados de sono... tomei um banho e fui dormir.
 
Estamos em total sintonia. Eu me ardo neste deserto que é a Califórnia. O sol castiga sem dó. No céu azul límpido nenhuma nuvem, sequer um risco. Os pássaros se escondem. Até os corvos procuram um pedaço de sombra e aqui não há árvores frondosas para nos aliviar. Elas são pequenas, raquíticas, quando não são palmeiras e coqueiros, altos e alheios. Do chão, parece brotar fumaça; o mar, ao lado, traz algum vento, mas, quanto mais para o interior, mais sufocante fica e a faculdade onde estudo fica distante dele.
 
A sede é uma constante e meu interior caminha em sintonia, eu ando ardendo e doendo, um fósforo encosta-se em meu nervo. Fugir para o passado ou para o futuro é impossível, tanto quanto escapar desse calor dos infernos.
 
Insatisfeita? Não, não estou. Decepcionada, sim, bastante. Você escreveu: "Fecho os olhos e só vejo paisagens. Tudo esbranquiçado. Aos pedaços. Nada me pertence e talvez nem mesmo a você." É o que estou. Andei forçando a miopia para não enxergar, mas a verdade sempre força a porta. E ela andou batendo na minha cara inúmeras vezes e, inúmeras vezes, eu fingi não perceber o tapa, o choque, a sensação de fim. Bateram portas na minha cara e eu andei dizendo que tudo entendia. Mania de ser Pollyanna!
 
Daí, me fiz silêncio, passo leve e curto. Às vezes, bate certa raiva e eu esbravejo, solto minhas ironias, sacudo, debocho. Mas, dói assim mesmo, vingando-me. Porque o que me machuca não é ímpar, não é singular, é um plural de gente, de fatos, e, inclusive, de obrigações.
 
A menina, que às vezes gostava de brincar sozinha, grita dentro de mim, pede ar, pede espaço. Eu queria dar as mãos, fazer roda, cantar junto, acompanhar, mas não posso, não consigo, independe de mim, ando só, por desgosto. E nele fico e aceito, abraço-o, pois não sou a cara do palhaço, de sorriso aberto e colado, eterno, para sempre, mesmo que entre lágrimas e dor. Não sei ser assim.
 
Sou o silêncio que ouço enquanto caminho do carro até a minha sala de aula, sob sol que machuca. Sou o sufocamento que sinto quando entro no carro quente e abafado.
 
Minha amiga, é preciso tempo, não o mesmo tempo que espero para que o ar condicionado do carro faça algum resultado, mas aquele que não se conta, por medo de se sabê-lo infindo.
 
Um abraço,
 
Suzana
 
Por Suzana Guimarães

       para www.lunnaguedes.wordpress.com

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

QUE SEJA CALMA

 
 
Imagem retirada da Internet, na delicadeza da colheita, por Dulcie Duda
 
 
Que seja calma a música que toca, em som baixo, para não despertar mais nada... que sejam silenciosos os passos, os sentidos e as batidas do coração. É preciso adormecer. Que as vozes não façam eco, não reverberem, apenas completem os espaços entre os vazios do silêncio, só o bastante necessário.
 
Que tudo se guarde, se acalme, seja raso, seja lento, seja nascituro, tudo ainda imbuído no ventre. Que o momento seja este: aquele em que o ponteiro parou. É preciso adormecer.

Por Suzana Guimarães

terça-feira, 31 de julho de 2012

RECADO


(Imagem retirada da Internet, na arte de colher belezas de Dulcie Duda)


Hoje, eu sonhei com você. Você estava vestido de branco. Apenas não sorria. 
Eu também não, quando penso em você. 

Saudade não faz sorrir.

(por Suzana Guimarães)

segunda-feira, 9 de julho de 2012

A CERTEZA DO FIM


(Suzana Guimarães por LRMeneghini)


                                                           
Ele me perguntou em três Línguas se eu estava pronta. E, em três Línguas, perdida, eu pensava em malas, bagagem, bolsa de mão. Nunca fui aquele tipo de pessoa que faz a mala, coloca-a no alto do velho guarda-roupa, senta e espera. 

Ele me perguntou em três Línguas para ter certeza da comunicação e eu disse que não. "Cedo demais" , respondi. Ele insistiu, não queria saber da bagagem, queria saber se os meus sentimentos estavam prontos.


Meu Deus! Se ele falasse discursos seria fácil, mas ele se expressa em frases sem par! Quais sentimentos? Do que ele falava? Em que tempo verbal? O que ele quer saber que eu nem sei? 


Sou estranha em minha própria cama. Desconheço as ruas que pisei infinitas vezes. Sou um corpo bem disfarçado de real no meio da praça. Nela, passei mil vezes mil meses. Os rostos que passam por mim são quase os mesmos, mas eu sou um corpo desconectado, a mais ou a menos, alguma coisa não mais adequada ao ambiente. Eu ando, sento, espero, olho, falo, respiro o ar e sei que hoje é o presente. Vasculho o passado. Nada encontro. Nem pó de lembrança viva, tudo remoto e distante, visto do alto de um satélite. Sim, claro, não me tornei desmemoriada, sei onde estou e sei o tanto que caminhei, mas meus olhos mal enxergam. 


Se ele pudesse me ouvir, eu gritaria que tudo é mais real para ele que para mim, ele que nem sabe de mim. Eu queria sacudi-lo. Sou uma estranha na praça. Como alguém pode andar por antigas conhecidas ruas se sentindo ficção? Virei um filme de mim mesma. Assisto às cenas e nelas vejo apenas a informação de que por ali passei. Há votos de boas-vindas. Há mesa farta à minha espera. Contudo, eu não voltei mais, mas, por ser a criadora da história, retornei para checar. Não, não creia no que todo mundo pensa ver. Conferi o resultado e eu realmente não voltei. Fui embora para sempre.

Eu não sabia que podia tanto...


No meio da praça, descobri a resposta para ele: é preciso a certeza do total desconhecimento do lugar, fato, pessoa ou coisa, para se dizer enfim acabou. A certeza da estranheza no ninho é a prova do fim, exigência de recomeço. Vesti o vestido por longos anos, dormi e acordei com ele, acreditei muito e desacreditei o mesmo tanto, criei fantasia e depois eu mesma a matei sem dor ou nostalgia. Acordei em cores fortes ou desbotadas, quase mortas, e dormi inúmeras vezes pedindo a Deus alguma cor. 


Hoje, na praça, o vestido se mostrou totalmente estranho, nunca visto. Eu realmente o vesti? Ele parece irreal, de alguém magro, magro, deitado esparramado na cama. Eu o olho, tão feio! 



Ele perguntou se eu estava pronta para a jornada. Eu queria sacudi-lo, de raiva, de amor, de ódio, e dizer a ele que, eu fiz as malas, mas as esqueci no lado esquerdo do corredor que leva ao quarto. Em cima, uma caixinha de lenço de papel esperando uma pessoa que passaria correndo, em lágrimas, para pegá-las, levá-las, e com elas retornar... 


Eu queria responder à pergunta que ele fez: a caixa de papel tornou-se inútil.

Por Suzana Guimarães

terça-feira, 26 de junho de 2012

EU ANDO NO ESCURO


(Suzana Guimarães por LRMeneghini)

Minha avó era pequena. Ela se esticava toda para pegar as coisas nos lugares altos, dizia que era preciso alongar, forçar o corpo para não atrofiar de vez. Eu ando no escuro para viver um pouco um mundo à parte, que não domino. Vasto mundo, esse. No escuro, raramente acerto no primeiro movimento, mas nem por isso corro atrás da luz. No escuro, eu sinto mais, calculo o passo e o dou, não fico apenas na expectativa dele. No escuro, o mundo parece se encolher e ao mesmo tempo se perder de mim e eu dele. É um exercício que faço. Minha avó se esticava, o que não aumentou o seu tamanho, mas lhe deu um certo jeito, uma boa flexibilidade para se virar sozinha, aos 80. Eu ando no escuro, para saber até onde podem ir meus braços, e, percebo que eles podem ir longe e facilmente, mas é preciso cuidado e uma certa calma, além de determinação. Mais fácil seria acender a luz. Mais fácil pegar a fruta na fruteira. Mas, cadê a fruteira? É preciso fazer esforço, o que a maioria não quer. A maioria quer maçãs caindo em acasos, quer saber o número do bilhete premiado. Se eu sonhasse para você, você seguiria as diretrizes, você diria sim? Não adianta sacudir o vidro do remédio antes de tomá-lo se você não tem disciplina para ingeri-lo, não adianta você sacudir a sua vida, se você não sabe o que fazer com ela.

por Suzana Guimarães

sexta-feira, 22 de junho de 2012

O inesquecível dos amores é aquele que acontece sem estardalhaço, que cozinha em fogo brando, sem alarde.

Suzana Guimarães - arquivo pessoal

Você ainda me ronda e eu a ti. Vêm os sonhos, lembranças inoportunas nos dias singulares. Vêm recordações, recortes do longo tempo de um amor calado. Talvez seja você quem se senta à beira da minha cama e tenta me dizer mil coisas, mas, se vai, desesperançoso de minhas respostas, pois eu durmo e eu me assusto e eu não gosto de vultos, mesmo que de amor.

Sonhei com você, noite passada, e por isso, só por isso, um simples sonho, eu irei carregá-lo pelo dia que segue, irei recordar tudo o que se foi. Às vezes, até paro para lembrar melhor, para captar mais forte... No sonho, o mesmo você. Meus amores se desbotaram ou perderam o feitiço. Alguns, nem reconheço e me pergunto se eu gostei mesmo, se foi tão intenso como parecia ser; hoje, tudo feia carcaça. Mas, você... Você se mantém, nem belo e nem feio e muito menos útil e eu que tanto admiro a frase do poeta*, pergunto-me a razão de você ser assim para mim, uma permanência, e isso é muito.

A música diz "você foi o melhor dos meus erros", sim, você foi. Eu fui a tua maior coragem e você, o maior e melhor dos meus desacertos.

Tenho 45 anos, e tenho certeza de que, aos 70, diante do mar, sentada, sozinha, lembrando, revivendo a minha história, eu vou me lembrar de que fui capaz de ultrapassar linhas divisórias, fui capaz de quebrar regra, ignorar normas, enlouquecer serenamente, por um dia e um pouco mais, e que isso foi e será um de meus orgulhos e você me ajudou a protagonizar isso, essa façanha, esse gostinho de que sou humana e cometo erros e que um erro pode ser uma bênção.

Sou quase um cálculo, eu me fiz, eu fui me fazendo, alguns ajudaram, outros, não, poucos construíram junto, e eu consegui manter tijolos internos quase que bem alinhados, quase que bem aceitos por mim mesma... e você sabe que eu calculo, apesar de ser péssima em matemática - isso, eu não sei se você sabe.

Mas, você não é um número a mais ou a menos, você não é conta que se faz, matemática que se apaga, ou talvez, somos nós dois juntos que resultamos tão bem! Você não multiplicou em mim, nem dividiu (nem isso!), jamais subtraiu, nunca pensou em somar, não foi incógnita e nem questão fácil. Você não foi o número zero, e não é sequer meia dúzia deles. Você é um número permanente, fixo, que carrego comigo porque quero, que não esqueço porque seria tolice.

Talvez, você não seja todo este texto que lhe dedico, e eu apenas o contenho por ter aprendido a difícil arte de amar sem esperar algum troco, entendi que amar alguém não significa somar e subtrair (essa conta é caminho certo para o desconforto), mas apenas resultar. E, hoje, você resulta para mim como resultou tantos anos atrás, naqueles inesquecíveis dias, inclusive naquele momento presente, existente, nem um dia a mais ou a menos além daquelas horas que batiam ao nosso lado: meu melhor erro.


Por Suzana Guimarães

* A frase do poeta John Ruskin, "não toleres aos pés de ti, nada que tu não aches belo ou que não lhe sejas útil."

terça-feira, 19 de junho de 2012

A COLECIONADORA DE REMÉDIOS E O HIPÓCRITA.

(Suzana Guimarães - arquivo pessoal)


Conheço uma mulher que coleciona remédios. Ela tem vasto estoque em casa, todas as caixas devidamente etiquetadas com seus prazos de validade à vista, lindamente organizadas em caixinhas de plástico transparente. De tempos em tempos, ela vai lá, dar uma olhada, conferir, viver o momento especial, aquele em que ela se sente orgulhosa de si mesma por ter à mão o remédio que, por acaso, poderá vir a precisar.

Tem gente assim, mas que faz o mesmo com pessoas. Coleciona gente. De vez em quando, na certeza de estar passando despercebidamente, dá uma olhadinha no outro, faz um agrado, envia uma carta amorosa, envia flores, fala que a relação atravessa tempo e estrelas... um pouco antes, ou um pouco depois de não responder a chamados, não se ocupar da pessoa de forma devida e amiga. Não carrega malas, não chama um táxi, não convida para passear, não mostra a cidade, não faz turismo de amizade - todo mundo sabe que mostrar aquilo que se vê todo dia é uma chatice -, corta a fala da pessoa, interrompe, alegando pressa, muito trabalho, uma correria só.

Há muitos remédios para se conferir, há sempre pouco ou nenhum tempo e um conjunto de mentiras! Quem dera fosse uma mentira apenas, pois, uma, convence, mais de duas, fica ridículo.

Há uma gente sempre muito ocupada, que trabalha pra caramba! Há remédios ocupando espaços, mas é preciso ter todos, para os casos de necessidade, um remédio salva, ou, pelo menos, é panaceia.

Há também um prazer oculto: o de se saber possuidora do lenitivo, da cura, daquilo que irá lhe dar de bandeja a realização de desejos, uns dias de pouso, um mapa bem explicado, alguém para desabafo ou risadas; o prazer incomensurável de se sentir possuidor de alguém.

A mulher que adora sua coleção de remédios pensa que ninguém sabe, mas todo mundo sabe. A pessoa que coleciona gente também pensa que ninguém percebe, principalmente a sua vítima do momento, mas é puro engano.

Os atos e passos do amigo de verdade são tal qual um dia claro, meio-dia em ponto, não há sombras. O amigo de verdade é amigo porque é, não mascara, não precisa, não justifica, já que a consciência não lhe pesa, ele não precisa puxar o saco.

A mulher dos remédios é uma coitada, com certeza, solitária, doente, perdida, carente. O colecionador de gente é um ator de teatro muito medíocre que pensa agradar a plateia, que pensa convencer.

Eu dispenso em minha vida, ambos, a colecionadora e o charlatão. Prefiro pessoas naturais, que fazem uso mediano das palavras e dos agrados... não suporto gente que brinca com o poder que pensa ter, que se convida sem convidar antes, que não é capaz de lhe dizer meia dúzia de palavras, precisadas ou não, naquele momento certo e bom, mas que depois lhe cobra um discurso inteiro. Não suporto gente que me tolera. Não quero tolerância de ninguém, quero o devido afastamento. Não aturo pessoas que sempre estão precisando de ajuda e pensam que ninguém mais. Não tolero o uso indevido das palavras amor e amizade.

Eu queria que as pessoas tivessem consciência do quanto são transparentes todos aqueles sentimentos feiosos, escondidos debaixo do travesseiro, que fazem roer as unhas, que doem o estômago e os olhos. Eu sempre quis muita coisa, e esse é mais um de meus desejos absurdos, pois, assim caminha a humanidade, já disse alguém, um dia.


por Suzana Guimarães