terça-feira, 26 de junho de 2012

EU ANDO NO ESCURO


(Suzana Guimarães por LRMeneghini)

Minha avó era pequena. Ela se esticava toda para pegar as coisas nos lugares altos, dizia que era preciso alongar, forçar o corpo para não atrofiar de vez. Eu ando no escuro para viver um pouco um mundo à parte, que não domino. Vasto mundo, esse. No escuro, raramente acerto no primeiro movimento, mas nem por isso corro atrás da luz. No escuro, eu sinto mais, calculo o passo e o dou, não fico apenas na expectativa dele. No escuro, o mundo parece se encolher e ao mesmo tempo se perder de mim e eu dele. É um exercício que faço. Minha avó se esticava, o que não aumentou o seu tamanho, mas lhe deu um certo jeito, uma boa flexibilidade para se virar sozinha, aos 80. Eu ando no escuro, para saber até onde podem ir meus braços, e, percebo que eles podem ir longe e facilmente, mas é preciso cuidado e uma certa calma, além de determinação. Mais fácil seria acender a luz. Mais fácil pegar a fruta na fruteira. Mas, cadê a fruteira? É preciso fazer esforço, o que a maioria não quer. A maioria quer maçãs caindo em acasos, quer saber o número do bilhete premiado. Se eu sonhasse para você, você seguiria as diretrizes, você diria sim? Não adianta sacudir o vidro do remédio antes de tomá-lo se você não tem disciplina para ingeri-lo, não adianta você sacudir a sua vida, se você não sabe o que fazer com ela.

por Suzana Guimarães

sexta-feira, 22 de junho de 2012

O inesquecível dos amores é aquele que acontece sem estardalhaço, que cozinha em fogo brando, sem alarde.

Suzana Guimarães - arquivo pessoal

Você ainda me ronda e eu a ti. Vêm os sonhos, lembranças inoportunas nos dias singulares. Vêm recordações, recortes do longo tempo de um amor calado. Talvez seja você quem se senta à beira da minha cama e tenta me dizer mil coisas, mas, se vai, desesperançoso de minhas respostas, pois eu durmo e eu me assusto e eu não gosto de vultos, mesmo que de amor.

Sonhei com você, noite passada, e por isso, só por isso, um simples sonho, eu irei carregá-lo pelo dia que segue, irei recordar tudo o que se foi. Às vezes, até paro para lembrar melhor, para captar mais forte... No sonho, o mesmo você. Meus amores se desbotaram ou perderam o feitiço. Alguns, nem reconheço e me pergunto se eu gostei mesmo, se foi tão intenso como parecia ser; hoje, tudo feia carcaça. Mas, você... Você se mantém, nem belo e nem feio e muito menos útil e eu que tanto admiro a frase do poeta*, pergunto-me a razão de você ser assim para mim, uma permanência, e isso é muito.

A música diz "você foi o melhor dos meus erros", sim, você foi. Eu fui a tua maior coragem e você, o maior e melhor dos meus desacertos.

Tenho 45 anos, e tenho certeza de que, aos 70, diante do mar, sentada, sozinha, lembrando, revivendo a minha história, eu vou me lembrar de que fui capaz de ultrapassar linhas divisórias, fui capaz de quebrar regra, ignorar normas, enlouquecer serenamente, por um dia e um pouco mais, e que isso foi e será um de meus orgulhos e você me ajudou a protagonizar isso, essa façanha, esse gostinho de que sou humana e cometo erros e que um erro pode ser uma bênção.

Sou quase um cálculo, eu me fiz, eu fui me fazendo, alguns ajudaram, outros, não, poucos construíram junto, e eu consegui manter tijolos internos quase que bem alinhados, quase que bem aceitos por mim mesma... e você sabe que eu calculo, apesar de ser péssima em matemática - isso, eu não sei se você sabe.

Mas, você não é um número a mais ou a menos, você não é conta que se faz, matemática que se apaga, ou talvez, somos nós dois juntos que resultamos tão bem! Você não multiplicou em mim, nem dividiu (nem isso!), jamais subtraiu, nunca pensou em somar, não foi incógnita e nem questão fácil. Você não foi o número zero, e não é sequer meia dúzia deles. Você é um número permanente, fixo, que carrego comigo porque quero, que não esqueço porque seria tolice.

Talvez, você não seja todo este texto que lhe dedico, e eu apenas o contenho por ter aprendido a difícil arte de amar sem esperar algum troco, entendi que amar alguém não significa somar e subtrair (essa conta é caminho certo para o desconforto), mas apenas resultar. E, hoje, você resulta para mim como resultou tantos anos atrás, naqueles inesquecíveis dias, inclusive naquele momento presente, existente, nem um dia a mais ou a menos além daquelas horas que batiam ao nosso lado: meu melhor erro.


Por Suzana Guimarães

* A frase do poeta John Ruskin, "não toleres aos pés de ti, nada que tu não aches belo ou que não lhe sejas útil."

terça-feira, 19 de junho de 2012

A COLECIONADORA DE REMÉDIOS E O HIPÓCRITA.

(Suzana Guimarães - arquivo pessoal)


Conheço uma mulher que coleciona remédios. Ela tem vasto estoque em casa, todas as caixas devidamente etiquetadas com seus prazos de validade à vista, lindamente organizadas em caixinhas de plástico transparente. De tempos em tempos, ela vai lá, dar uma olhada, conferir, viver o momento especial, aquele em que ela se sente orgulhosa de si mesma por ter à mão o remédio que, por acaso, poderá vir a precisar.

Tem gente assim, mas que faz o mesmo com pessoas. Coleciona gente. De vez em quando, na certeza de estar passando despercebidamente, dá uma olhadinha no outro, faz um agrado, envia uma carta amorosa, envia flores, fala que a relação atravessa tempo e estrelas... um pouco antes, ou um pouco depois de não responder a chamados, não se ocupar da pessoa de forma devida e amiga. Não carrega malas, não chama um táxi, não convida para passear, não mostra a cidade, não faz turismo de amizade - todo mundo sabe que mostrar aquilo que se vê todo dia é uma chatice -, corta a fala da pessoa, interrompe, alegando pressa, muito trabalho, uma correria só.

Há muitos remédios para se conferir, há sempre pouco ou nenhum tempo e um conjunto de mentiras! Quem dera fosse uma mentira apenas, pois, uma, convence, mais de duas, fica ridículo.

Há uma gente sempre muito ocupada, que trabalha pra caramba! Há remédios ocupando espaços, mas é preciso ter todos, para os casos de necessidade, um remédio salva, ou, pelo menos, é panaceia.

Há também um prazer oculto: o de se saber possuidora do lenitivo, da cura, daquilo que irá lhe dar de bandeja a realização de desejos, uns dias de pouso, um mapa bem explicado, alguém para desabafo ou risadas; o prazer incomensurável de se sentir possuidor de alguém.

A mulher que adora sua coleção de remédios pensa que ninguém sabe, mas todo mundo sabe. A pessoa que coleciona gente também pensa que ninguém percebe, principalmente a sua vítima do momento, mas é puro engano.

Os atos e passos do amigo de verdade são tal qual um dia claro, meio-dia em ponto, não há sombras. O amigo de verdade é amigo porque é, não mascara, não precisa, não justifica, já que a consciência não lhe pesa, ele não precisa puxar o saco.

A mulher dos remédios é uma coitada, com certeza, solitária, doente, perdida, carente. O colecionador de gente é um ator de teatro muito medíocre que pensa agradar a plateia, que pensa convencer.

Eu dispenso em minha vida, ambos, a colecionadora e o charlatão. Prefiro pessoas naturais, que fazem uso mediano das palavras e dos agrados... não suporto gente que brinca com o poder que pensa ter, que se convida sem convidar antes, que não é capaz de lhe dizer meia dúzia de palavras, precisadas ou não, naquele momento certo e bom, mas que depois lhe cobra um discurso inteiro. Não suporto gente que me tolera. Não quero tolerância de ninguém, quero o devido afastamento. Não aturo pessoas que sempre estão precisando de ajuda e pensam que ninguém mais. Não tolero o uso indevido das palavras amor e amizade.

Eu queria que as pessoas tivessem consciência do quanto são transparentes todos aqueles sentimentos feiosos, escondidos debaixo do travesseiro, que fazem roer as unhas, que doem o estômago e os olhos. Eu sempre quis muita coisa, e esse é mais um de meus desejos absurdos, pois, assim caminha a humanidade, já disse alguém, um dia.


por Suzana Guimarães

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Há um quê nos outros que me desgosta e cansa.


(Suzana Guimarães por LRGM)

Há um quê nos outros que me desgosta e cansa.

Suzana Guimarães

segunda-feira, 4 de junho de 2012

LEMBRAR É POUCO

(Suzana Guimarães - arquivo pessoal)


Eu me lembro de você. Não fique triste por isso e muito menos feliz. Apenas me recordo, da mesma maneira que me lembro da Iolanda, conhecida da minha mãe, uma mulher infeliz com o marido, ele batia nela e eles tinham um filho. O quarto do menino era delicadamente decorado, ela era dedicada. Eu tinha 12 anos ou menos, ouvia as palavras da minha mãe para ela, palavras inúteis pois Iolanda não se defendia, não lutava, não ouvia ninguém, até que um dia já não pôde fazer mais nada, mesmo que quisesse, morreu.

Eu me lembro de você, assim como me lembro da Telma, já grande, no colégio, fazendo xixi na calça, parada, com o rosto vermelho, envergonhada, assistida pelas freiras e pelo pai que chegava às pressas para buscá-la. Eu me lembro da cena.

Lembro-me de outra menina, é claro, trocarei todos os nomes, a essa darei o nome de Bela, lembro-me de seu cabelo ruivo, das sardas, lembrei-me dela por anos, sem qualquer motivo, ou talvez, o único, o irmão dela parecia ter problemas para andar. Aquilo incomodava a menina observadora que eu era. Bela se viciou em drogas. Está num hospício há mais de 15 anos, pois, aos vinte e poucos tentou matar o irmão.

Eu tinha uma fileira de meninas para lembrar por lembrar, pois, sequer chegaram a ser minhas amigas. A cidade era muito pequena, o colégio e o nosso mundo. Fiquei sabendo que Alexandra morreu aos 32 anos de infarte e a Lidiane, aos 30, também, pela mesma razão. Leontina misturou insulina com droga e deixou a vida aos 17. A menina popular, que cantava numa banda, foi internada como louca num sanatório, porque se envolveu com drogas e se assumiu homossexual. Após um tempo, a família permitiu que ela voltasse para casa, agora, sim, louca, de tanto choque que levou. Quase tive uma crise histérica ao telefone, ouvindo a preleção de Mariana (que encontrei no Orkut), fiquei abismada com o rosário de desgraças. Lembrei-me dos retratos 3x4 guardados em minhas caixas, com dedicatórias, recebidos das colegas. Sim, meninas, apenas meninas naquele colégio.

Lembro-me de você, sem muito alarde, sem muita graça ou desgraça, mas lembro.

Quando penso na precariedade da vida, penso na minha, e, aliviada, agradeço a mim mesma, por tudo que fiz e vivi. Tudo pouco, nunca fui de me lambuzar até o enjoo, mas tudo pleno. Evitei as loucuras e a ignorância, porque eu me lembro também do meu pai dizendo que ele só tinha medo de dois tipos de pessoas: dos loucos e dos ignorantes. E ele estava certo.

A ti, ofertei o melhor de mim, sei que, junto, foram coisinhas que você talvez não tenha gostado, mas que tenho certeza, hoje, fazem falta em teu mundo. Eu alegrei os teus dias com meu riso, bom humor e uma certa falta de horário; com meu amor escancarado, meus conselhos, minha atenção, minha presença certa - você sempre soube que haveria um retorno, uma resposta, uma volta.

Hoje, estou calada e assim permanecerei. Não sou de loucuras, repito, e qualquer passo ou ato seria me lançar na vertigem do desassossego. Sou de doideiras mansas, aquelas que não fazem mal a mim e a ninguém, só mostram que a vida pode ser bem mais interessante.

Sou teu desejo de voo, sou decisão. Sei viver bem dentro do não e do sim. 'Talvez', 'acho' e 'não sei' me irritam. Nunca lancei moedas na fonte dos desejos. Não construí castelos. O pouco que idealizei para mim, não aconteceu, mas, ganhei muito tudo o que nem imaginei, e, cedo, percebi que o segredo era castrar a vontade.

Lembro-me de você e percebo que eu perdia naquele jogo o tempo todo - um jogo que eu nem sabia estar jogando - como nem sabia estar observando a Iolanda, a Telma e tantos outros. Sou crua nos sentimentos, vejo-os como se apresentam para mim. O tempero e o cozer sempre caberão ao outro. Faltou a você, o sal, a pimenta, a mostarda. Faltou a você, mãos decididas, sou mulher, e você só sabia pensar, grande erro. Mulheres esperam ação dos homens, biologicamente já é assim. Ah, isso me lembra as aulas de Direito Penal e o professor dizendo ser impossível um homem ser estuprado, poderíamos falar em várias outras condutas abusivas e delituosas, mas nunca em estupro. Ele dizia, "se ele não quiser, o órgão sexual não funciona, gente, não funciona mesmo!". É, lembro-me sempre dessa época boa da minha vida, incomparável a qualquer outro momento como estudante, mas não sofro, assim como não sofro por você e por todos os homens sem mãos que conheci e que desconhecem o valor de um tempero.

Lembro-me de tudo, da roupa da minha primeira comunhão, do nome que ninguém se lembra, da palavra presa na ponta da língua e que não sai, de tuas palavras e de você. Nada me angustia porque conjuguei todos os verbos e cantei a tabuada inteira, não errei o discurso de saída e muito menos as boas-vindas.

Mas, lembrar é pouco, a mim, não basta, é o mesmo que ir ao cinema, basta na hora e um tempo depois; mais tarde, vira uma contação de caso, igual a essa.

por Suzana Guimarães