terça-feira, 18 de maio de 2010

IX - Outubro de 2004


     Certa vez, precisei tirar a segunda via do meu título de eleitor. Peguei um táxi. Eu poderia ter ido de ônibus, mas ônibus demora. Dirigindo o meu próprio carro, nem pensar, porque eu poderia me envolver num acidente. A minha atenção estava inteiramente voltada para o que eu ia fazer: assinar.
     Dias antes, ao preencher a ficha requerendo o documento pela segunda vez, mal consegui pegar na caneta. Preenchi do jeito que foi possível e assinei o pedido com um garrancho.
     Mas, naquele dia, dentro do táxi, eu pensava apenas que ia assinar, que ia assinar, que ia assinar... Eu que sempre amei letras bonitas! Com certeza, ficaria o rabisco tremido, torto, pelas metades. E ia carregar aquilo, daquele jeito, sempre! Ou até fazer um outro. Mas fazer um outro seria a mesma coisa. Eu já estava naquela situação há anos. Conhecia os resultados.
     Às vezes, eu ia de ônibus para o confronto. Indo devagar, talvez, no meio do caminho, acontecesse o milagre e eu me tornaria imediatamente uma pessoa segura, normal.
     Era sempre a mesma coisa. Era como se o mundo parasse de dar voltas. Ficasse suspenso no ar. E eu suspensa nele, por uma linha bamba, e, abaixo, o mundo a me julgar. Porque o mundo julga as diferenças. Principalmente elas, porque o mundo quer todos iguais, competentes e capazes. Era o que eu sentia e nada neste mundo poderia me atingir ou me transformar. Era a minha realidade e você nem ficou sabendo.
     Cheguei ao cartório eleitoral parecendo um fantasma de tão leve, porque faltava solidez, faltava energia, equilíbrio, razão. E aí você fica leve, parecendo um saco vazio em pé, sustentado por um cabo de vassoura ou pela linha de exigência da vida que não quer nem saber, lhe impõe atitudes ou então, você perde. 
     Eu havia acordado cedo para fazer aquilo. As mentiras já estavam prontas. Eu mentia sempre. O tanto que me livrasse da culpa. A serventuária do cartório com certeza estava diante de uma moça branca feito papel. Era fácil dizer "saí cedo de casa para fazer um exame de sangue e eles sempre atrasam, não é?" Muito preocupada, ela me perguntou se eu havia comido algo, após o exame. Respondi que não e num passe de mágica apareceu um bolo na minha frente. O lanche dela. Um bolo seco de padaria e eu nunca gostei de bolo seco. Recusei terminantemente, mas ela foi mais decidida e disse que eu não sairia de lá sem comer o bolo. Comi. Era difícil engolir porque eu não sentia fome naquelas ocasiões. Fiquei péssima porque eu estava comendo o lanche dela. A mentira. A pequenez de mim mesma. Quando acabei de comer, ela me entregou o título e disse que assinasse mais tarde, fosse para casa imediatamente e repousasse. E, nunca mais, nunca mais mesmo, andasse pelas ruas de estômago vazio.
     Sabe, eu não gosto de me lembrar disso, mas é que ando me lembrando para recuperar a coragem que se esvai. Não quero passar por esses momentos novamente. Tenho que lutar contra. Os remédios sozinhos não fazem muito. E, como eu lhe disse, estou tendo a minha primeira recaída.
     Eu não tinha uma iminência de crise. Tinha a crise. Dormia bem. Sofria com antecipação, mas sem crise.  Passava os dias que antecediam “ao confronto” em suspenso. Ou longos meses. Sofria apenas angústia, vontade de não ir, vontade de chorar. Às vezes, na antecedência da coisa, eu tinha confusão mental e só. Tremer, eu tremia sempre. Tenho tremor de família ou tremor essencial. E, para isso, não há cura. Se você toma o remédio não treme; se não toma, treme. Meu pai treme, meu irmão treme, meu avô ou avó provavelmente tremiam. Na hora da execução, eu tremia mil vezes mais, tinha taquicardia, calor pelo corpo todo, desespero, agonia, vontade de vomitar, raciocínio desfocado, vergonha, humilhação, pernas bambas. O mundo se tornava pequeno, do tamanho de uma ervilha. Ervilha sem gosto. Quase que podre.
     Falando em tremor, eu não sabia que há um medicamento que diminui a frequência cardíaca e a tremedeira, também usado por hipertensos. Bom, parece que eu realmente não sabia de nada. Eu nunca gostei de ver minhas mãos trêmulas. Não gostava de ouvir comentários alheios e risonhos de que eu estava tremendo. Mas eu tremia o tempo todo, porque minha família também tremia. Herança genética. Dr.J me receitou o remédio adequado.
     Dr.J prefere denominar a doença de Fobia de Desempenho. Ele encontrou a melhor definição, pois nem sempre um fóbico tem problemas no âmbito social. Eu tinha algum? Nenhum. Você esteve muito comigo, tenho certeza de que nunca desconfiou de nada.


É preciso lembrar que: não se deve tomar remédios por conta própria. Li num jornal a notícia triste de uma moça que morreu, em Belo Horizonte, Minas Gerais, porque tomou o remédio a que me refiro acima para fazer exame de direção. Alguém indicou o medicamento para ela. Músicos, artistas, políticos, cantores, enfim, pessoas que enfrentam plateia, costumam fazer uso dele. A moça morreu porque não se informou da maneira correta. É preciso ir ao médico. Apenas ele tem capacidade para saber se você pode fazer uso da medicação e a quantidade. A moça ingeriu oitenta miligramas, uma dosagem altíssima. Há pessoas que são proibidas de tomá-lo, como por exemplo, a asmática.    

  
     Quando escrevo para você, não sei de outro mundo, não transito mentalmente por aí, perdida, carente, insuficiente. Me sinto plena.