quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

CARTAS DE DEZEMBRO - a quinta

(by RMS)


Long Beach, 26 de dezembro de 2013.



Querida E.,


Hoje, em um quase final de manhã, caminhei à beira-mar... como se eu fosse outra, vinda de alguma de todas as minhas casas. Imaginárias. Uma forma de me homiziar? Às vezes, penso que sim, às vezes, que não. São apenas casas que me escondem ou eu invento? O que sei é que hoje, pela manhã, diante do mar, tão azul, sem ondas, que recordou-me o rio Colorado, o mesmo tom forte, eu me revi, a mesma de quatro anos atrás que não sei bem onde esteve. Daí, a sensação de outra e de moradias, invisíveis moradas que me acolhem.

Revi as gaivotas, sabia que elas se perfilam todas as tardes para assistir ao pôr do sol? Não fiquei para ver, mas eu sei, via sempre, logo que cheguei aqui. Mesmo que a criança de cabelos longos as assuste, elas voltam quantas vezes preciso for, levantam voo e descem para repetir até à exaustação da menina. São agressivas por comida, podem lhe atacar, essas aves, contudo, para ver o crepúsculo, tornam-se pacíficas. Para você que gosta de filmes, tenho certeza de que foi daí que o diretor do filme 'Cidade dos Anjos' inspirou-se. Lembra-se dos anjos perfilados à beira-mar, nos finais de tarde?

Esta vida inspira-me. Sua mobilidade inspira-me. A minha própria estranheza cria meus palcos... Por onde andei, moça? 

Com os pés naquelas águas geladas, rezei para o meu pai, as 'Ave Marias' saíam sem policiamento... pensei em tudo e em nada, lembrei-me de você, ah, nem seu movimento arvorou-me ou precipitou qualquer coisa a correr. Eu andava, eu orava, pensava, mas estava em mim tudo muito parado, ao contrário de você que me lembra o filme 'Corra, Lola, corra'. Tudo quieto, ações meramente coadjuvantes... certa vez, meu pai comentou, "não acredito nestas tuas cinzas, elas não existem, se cutucarem, sai faísca", quando eu, indolentemente e de forma muito desanimada, contei para ele que aquela, aquela agitada, falante, barulhenta era só cinzas.

Você perdeu a beleza que eu vi, mas guardei para ti essa sensação de molejo de um corpo em um trem, em um ônibus, em uma kombi velha que eu peguei no sul da Bahia e sacolejava meus miolos, minhas tripas, ao som de  musiquinhas do Caribe. Meu amigo, ao meu lado, disse-me, "isso está me lembrando Almodóvar". É tudo o que me lembra você, pois eu lhe conto histórias enquanto você se movimenta, sobe e desce, corre, atravessa a Avenida Paulista, espia o homem de terno branco que passa, sonha algo parecido a um filme, poderia, sim, ser o filme argentino que você me recomendou, e, esse homem sorriria para você e você para ele, vocês achariam tudo muito engraçado, engraçado e feliz, incrível e inexplicável alegria por aquela visão não planejada, mas sonhada, num fundo de cinema, enquanto engole a tela à frente e deseja, bem no íntimo, 'ah, isso um dia acontecerá comigo!'. 

Com certeza, você tem suas belezas para ver. Mas, a gente sabe, de repente, aquele belo homem cospe no chão, enfia o dedo no nariz, merda, destrói tudo! É nesse instante que a gente cria-se outra e confina-se em alguma casa, qualquer espaço vago, onde caiba, nós.

Meu passeio de hoje foi uma fuga, eu estava exausta da mesmice do meu apartamento, do falatório de todos, somos quatro, e vivemos há quase cinco anos em constante círculo vicioso. Nós nos temos, nos gastamos, nos reiventamos, nos odiamos e nos amamos. Brigamos constantemente por nosso direito à individualidade, delimitamos espaços, quando batemos as portas de nossos quartos. Falamos em duas Línguas, bom, eu insisto que seja em uma só, mas a minha filha de seis anos, nascida na realidade em Nova Lima, e, não, em Belo Horizonte, que seria o lógico, grita: "oh, man!". E eu rio, e ela consegue muita coisa de mim porque seu sotaque de americana é lindo demais.

Sabe um passeio isento? Foi esse. 

Meu filho mais velho - ainda não comentei, estávamos, claro, juntos, nesse passeio, mas eu os abandonei debaixo do pier e caminhei sozinha - disse-me, "você já aproveitou esta cidade, agora, você está vivendo-a". Moça, de repente, nossa criação fica melhor que nós, seus criadores. Eu falei que não aproveitava mais meu pequeno paraíso... então, é isto, estou no momento seu, instante de intensa locomoção e nem me dou conta... pois as outras de mim atraem-me para suas estranhas casas...

Tenho mania de filme, mania de fotografia e de sagrado. Tenho hábito de sonhar com coisas eternas, almas etéreas, amores que não se acabam. Até hoje, atravesso ruas, com fundo musical, feito por mim, para mim, não me pergunta quais são essas músicas, mas o palco existe, e eu invento-me. 

Sabe o homem de terno branco? Ele passará por você, mas presta atenção, vocês se reconhecerão, e, para isso, esqueça todas as suas invenções, todos os roteiros, porque, garanto-lhe, vocês ficarão feito bobos, não saberão muito bem o que fazer e o diretor, esse, está tomando um café do outro lado da rua, de costas para a Avenida Paulista, rascunhando algum longa metragem. Acontece, E., acontece.

São Paulo dorme, você dorme, eu, não. É cedo. Estamos todos na sala do nosso apartamento, na realidade, duas salas que se juntam, onde fizemos três ambientes. Estou diante do meu Laptop, em minha mesa de vidro que é um jardim desenhado; minha filha calou-se, enfim, assiste a um filme em seu presente de Natal (alguns cavalinhos coloridos, pequeninos, assitem com ela, enfileirados, diante do Tablet); meu filho joga algum jogo que nunca saberei sequer ligar e meu marido está lendo alguma coisa, com os óculos pendurados na ponta do nariz. Chega uma hora que ninguém aguenta mais de sono, porém todos permanecem imóveis, parece que estendendo o dia um pouco mais. 

Eu estou aqui, mas ainda lá, à beira-mar, como eu lhe disse, tenho mania de eternizar. Uma manhã igual a todas as outras, onde nada de surpreendente aconteceu, somente o fato de que, se eu não fosse até lá não estaria mais feliz, agora.


Beijo,


Suzana


Por Suzana Guimarães 

Nota: fotografia feita no dia do passeio...