terça-feira, 19 de junho de 2012

A COLECIONADORA DE REMÉDIOS E O HIPÓCRITA.

(Suzana Guimarães - arquivo pessoal)


Conheço uma mulher que coleciona remédios. Ela tem vasto estoque em casa, todas as caixas devidamente etiquetadas com seus prazos de validade à vista, lindamente organizadas em caixinhas de plástico transparente. De tempos em tempos, ela vai lá, dar uma olhada, conferir, viver o momento especial, aquele em que ela se sente orgulhosa de si mesma por ter à mão o remédio que, por acaso, poderá vir a precisar.

Tem gente assim, mas que faz o mesmo com pessoas. Coleciona gente. De vez em quando, na certeza de estar passando despercebidamente, dá uma olhadinha no outro, faz um agrado, envia uma carta amorosa, envia flores, fala que a relação atravessa tempo e estrelas... um pouco antes, ou um pouco depois de não responder a chamados, não se ocupar da pessoa de forma devida e amiga. Não carrega malas, não chama um táxi, não convida para passear, não mostra a cidade, não faz turismo de amizade - todo mundo sabe que mostrar aquilo que se vê todo dia é uma chatice -, corta a fala da pessoa, interrompe, alegando pressa, muito trabalho, uma correria só.

Há muitos remédios para se conferir, há sempre pouco ou nenhum tempo e um conjunto de mentiras! Quem dera fosse uma mentira apenas, pois, uma, convence, mais de duas, fica ridículo.

Há uma gente sempre muito ocupada, que trabalha pra caramba! Há remédios ocupando espaços, mas é preciso ter todos, para os casos de necessidade, um remédio salva, ou, pelo menos, é panaceia.

Há também um prazer oculto: o de se saber possuidora do lenitivo, da cura, daquilo que irá lhe dar de bandeja a realização de desejos, uns dias de pouso, um mapa bem explicado, alguém para desabafo ou risadas; o prazer incomensurável de se sentir possuidor de alguém.

A mulher que adora sua coleção de remédios pensa que ninguém sabe, mas todo mundo sabe. A pessoa que coleciona gente também pensa que ninguém percebe, principalmente a sua vítima do momento, mas é puro engano.

Os atos e passos do amigo de verdade são tal qual um dia claro, meio-dia em ponto, não há sombras. O amigo de verdade é amigo porque é, não mascara, não precisa, não justifica, já que a consciência não lhe pesa, ele não precisa puxar o saco.

A mulher dos remédios é uma coitada, com certeza, solitária, doente, perdida, carente. O colecionador de gente é um ator de teatro muito medíocre que pensa agradar a plateia, que pensa convencer.

Eu dispenso em minha vida, ambos, a colecionadora e o charlatão. Prefiro pessoas naturais, que fazem uso mediano das palavras e dos agrados... não suporto gente que brinca com o poder que pensa ter, que se convida sem convidar antes, que não é capaz de lhe dizer meia dúzia de palavras, precisadas ou não, naquele momento certo e bom, mas que depois lhe cobra um discurso inteiro. Não suporto gente que me tolera. Não quero tolerância de ninguém, quero o devido afastamento. Não aturo pessoas que sempre estão precisando de ajuda e pensam que ninguém mais. Não tolero o uso indevido das palavras amor e amizade.

Eu queria que as pessoas tivessem consciência do quanto são transparentes todos aqueles sentimentos feiosos, escondidos debaixo do travesseiro, que fazem roer as unhas, que doem o estômago e os olhos. Eu sempre quis muita coisa, e esse é mais um de meus desejos absurdos, pois, assim caminha a humanidade, já disse alguém, um dia.


por Suzana Guimarães