segunda-feira, 17 de julho de 2017

Sobre copos de vidro, rugas e o tempo. Ou, "Pelo menos, esse pedacinho do chão da cozinha está limpinho".



Após quatro semanas da mudança de casa, estávamos exaustos​ de tudo, das locomoções, da bagunça, da eterna procura pelas coisas ainda encaixotadas e de nós mesmos porque tudo era motivo de trabalho ou demora. Certo final de tarde, ao colocar a louça para lavar na máquina, um copo se quebrou e eu ri sozinha, esse copo era um dos que ficaram guardados por sete anos, e eu não gostava dele. Ficou guardado junto com uma dúzia de outros feios e idênticos a ele porque os mais bonitos eram usados e constantemente perdidos. Deve haver uma lei oculta que faz quebrar os copos de cristal e deixar incólumes os de requeijão! Nesse dia, logo após, a minha filha derramou comida que se espalhou do balcão da pia da cozinha até o chão, e, eu quase enfartei, pois estava cansada, queria ir pra cama e dormir. Ela poderia ter limpado, mas eu estava na fase "on". Agachada no chão, recebi ajuda do meu filho que disse, "Pelo menos, esse pedacinho do chão da cozinha está limpinho". 

Eu ri novamente. A gente se arranha, se corta, cria cicatriz, cria rugas em lugares que por anos a fio a gente passou cremes, vê perder massa muscular por estar fora da academia em questão de mês, e, depois, sente dó das coisas que se quebram, desbotam ou se mancham. Da mesma forma, damos atenção indevida e fora de hora a tudo o que nosso anjo não concordou, mas insistimos. Não é para guardar para depois, não. É para descartar. É para usar o bonito mesmo que a gente o perca, embora vazios todos os armários.

A frase dele, "Pelo menos, esse pedacinho do chão da cozinha está limpinho", acalmou-me, fez-me rir, deixou mensagem boa, gratificante...

Pelo menos, a gente já fez um tanto, um bastante considerável, pelo menos, pouco a pouco, em doses homeopáticas, a gente vai conquistando nossos sonhos ou mesmo tateando no escuro do cotidiano com a sensação de que não desistimos antes da hora ou caímos alquebrados em cima das caixas que viraram residência das traças e das aranhas. 

Já não posso mais encarar a vida com a fúria de antes. Eu começava alguma função e só parava quando ela chegava ao fim ou eu começava a passar mal de cansaço. Meus filhos parecem seguir outra conduta de vida, menos estressante... o meu marido cansou; entregou-se. As caixas com seus pertences estão sendo esvaziadas ao passo da tartaruga; duas por semana, no máximo. E eu apoio.

A teoria de todo dia tentar para conquistar um pouco para vencer os vícios existe ainda porque é eficaz para cigarros, drogas e álcool e para a vida em seu sentido geral. É de pouco em pouco. É interagindo com as pessoas e as coisas como se tivéssemos todo o tempo do mundo que a gente passa a ter qualidade de vida.

Três semanas depois do incidente da comida que escorreu pelo balcão da cozinha, eu limpei o chão por completo. Fez alguma diferença? Fez. Lentamente, volto a viver como eu era quando criança e sabia lidar com a vida... a gente recupera, quando insistimos e nos esforçamos, essa sabedoria que nosso adulto aniquilou... pelo menos, através do pouco, caminhamos para o mais de forma natural e leve.


Por Suzana Guimarães

Um comentário:

  1. Confesso que senti um certo receio quando li "derradeiras palavras." Confesso também que desde quando comecei a acompanhar teus blogs, há sei lá quantos anos, tua escrita sempre me pareceu possuir um certo hermetismo, o que só me fez respeitar ainda mais a obra e a autora. Ressabiado vim ler as tais palavras, e, para surpresa minha, elas me deram um alívio, um encontro inesperado. Por caminhos diversos, vidas que sequer se cruzaram, chegamos a mesma conclusão. O momento é agora. Pouco importa se o cristal se quebre, ou o armário fique vazio. Vivemos, pois não?

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