terça-feira, 29 de julho de 2014

Trechos (cartas que escrevi) - II

(Ilustração, Antonio Cláudio Zamagna)


"(...) Aos vinte anos, eu me questionava sobre a minha vida aos quarenta porque seria essa a época de renovar a carteira de motorista. Quando essa data chegou, eu estava desmontando meu mundo para recriar outro, aqui. Atualmente, questiono-me onde estarei na minha velhice, o que estarei fazendo, com quem estarei, se terei conseguido alcançar algum estágio de plenitude... Então, percebo o quanto tudo é insustentável, etéreo demais, volátil. 

Será que ao invés de Portugal, eu estaria ganhando esta Europa que fascina? Não sei, sei que estou aqui, onde tudo é muito moderno e perfeito. Isso me basta, mas não mata as questões.

Alguma coisa contra a perfeição? Nada. Porém, a vista às vezes cansa. Não sei se você sabe, todos os shoppings e condomínios da Califórnia são semelhantes. Algum arquiteto ficou muito rico e nós bem pobres. Poucos em Los Angeles saem do padrão, mesma cor, mesmo design. No mais, sequência de déjà vus.

Sinto falta de cheiro de terra, de mato, de bosta de cavalo. Como são os voos dos pássaros daí? Eu vejo e escuto maritacas escandalosas - uma praga indestrutível, reproduziram-se em demasia - sobrevoando os altos das palmeiras Imperiais, e muitos corvos que nada têm de coisa ruim. Gosto do som que fazem, do jeito que bicam as calçadas de concreto. As gaivotas são belas quando se perfilam na areia da praia para assistirem ao pôr do Sol, mas agressivas por um naco de pão.

É março. Creio que voltarei a compactuar com os ares daqui. Penso que tudo é uma fase, longa, mas inexorável e esperada, quem entrou na chuva não pode reclamar do que se molhou ou não. (...)"

Suzana Guimarães



P.S.:  Estou relendo cartas que escrevi no passado, cartas reais. "Trechos" serão publicações de partes dessas missivas.