quinta-feira, 14 de março de 2013

"Dominós enfileirados, um cai e assim segue..."

 

 Pela manhã, você acorda. Você pensa que a manhã é a mesma de ontem e anteontem, mas não é. As manhãs são as peças do dominó que estão a cair, uma por uma... apenas isso. O que me aguça é a oca sensação do que virá após todas as quedas. A alegria das quedas é o encontro com o outro.
 
Ela chegou ontem, embora esteja aqui o tempo todo. Eu abri dois pesados livros para ela, ou talvez, mais. Tantas palavras, frases, textos e mais textos... ela apontou algumas peças, uma delas caiu porque, estar numa mesa de jogo, é real demais para quem sonha apenas com o dia do jogo, enquanto isso, masturba sua alma no delírio alheio. Ela apontou uma outra peça, chocada, constatou que a peça imaginava-se inferior às outras... e não bastava e não adiantava e nada resolveria eu dizer que não era bem assim, que o que a peça continha em si era bem mais que fazer parte de um jogo de dominó.
 
Eu não soube ler a história do dominó. Ela contou para mim, como a gente faz para aquele que quer ler, mas não pode fazê-lo. Ela contou para mim a história de algumas peças e eu pedi que parasse, pois tenho vários amanhãs.
 
A alegria das quedas é o encontro com o outro. Agora, já posso ver tudo o que eu não via e queria ver... A peça que dispensa a realidade do jogo, para mim, é descartável. Desfez-se do contexto dos meus amanhãs.
 
A peça que se sente menor, enfileirada e caída, eu a coloquei novamente na mesa, mesmo que ela não queira. Posso guardar em mim quantos jogos e amanhãs eu quiser. Se cabem em mim ou não, problema meu, de mais ninguém, nem da peça. Guardo em mim o que quero pois é tudo o que eu realmente tenho, minha morada interna.
 
A peça me leva para longe das letras, não preciso mais da palavra, da forma que precisava antes. Apraz-me a verdade que alcancei ao saber os motivos daquela queda... e o dia se fez cinza clarinho e frio, meninos em jaquetas vermelhas, ardidas na brancura do lago ao fundo, deslizam-se em seus skates a caminho da escola. Eu deslizo também, pensando em alecrim, jasmim, em cheiro de boas manhãs, no entendimento do outro, numa boca que se fechou para mim, tão bela boca!
 
O que dói não é o medo. O que mais dói é ver alguém medindo-se menor do que realmente é.
 
Ó, pássaro, ó, saia da beira desta janela, alcança a vastidão que espera por você e voa, e, quando quiser, canta para mim um canto rouco...
 
Por Suzana Guimarães
 
Dedicado a Mary Cristiane Araújo.