quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O QUE SEI SOBRE ESCAPAR


fotografia, por ROSE DALY



                     Suzana C.Guimarães


Sim. Fui (e talvez ainda seja) um muro, um galho de árvore, um bebedouro, um fio de alta tensão, um poste, uma grama, a areia da praia, os céus dos pássaros. Sim. Aceitando ou não, querendo ou não, fui.

E vinham eles me sobrevoar, alçar voos longos, rasteiros, me bicar. E vinham eles, em bandos ou solitários, se esfregar em mim, sacudir as penas, rodopiar, depositar seus minúsculos excrementos disfarçadamente, cantar para mim, fazer longos silêncios, sentir suas pernas machucadas, asas quebradas, roçar seus bicos, morrer em paz.

Fui feita para aceitar, acordar e esperar. Eu sempre soube disso. Minhas antenas ligadas, minha constante capacidade de prever atos e passos alheios, sonhar destinos, sentir com antecedência foram presentes a mim ofertados ao nascer; mas paga-se caro por serem tão especiais.

E, mesmo predestinando, eu vivi a pedir desfechos. Desfecha nossa paixão, meu tesão, faz água rolar com razão, desfecha nosso amor, envia-me pombos com cartas longas, longas queixas, verdades quer sejam fragmentadas ou não, dá término, conclui, põe ponto final. Mas os pássaros sempre de nada souberam ou quiseram, preferiram as reticências, ou da poesia, de tudo aquilo que se aspira e não pode, ou aquelas, frutos da ignorância (tão fácil escrever et cetera!). Para mim, isso tudo hoje pouco importa.

Fui feita para aceitar, acordar e esperar, mas aprendi a escapar. Aprendi a fugir das prisões e da minha própria previsão. Aprendi a não mais implorar por ratificações, por meus à partes. Não os quero mais.

Que venham os pássaros e façam de mim pousada (breve estadia) ou mesmo um muro, um banco de praça, onde caem penas e excrementos, onde ouço música ou piu-pius, bater de asas e mais nada.

Que venham, pois eu me atirei ao chão, vestida em quimono, atada de largos esparadrapos nos punhos. Aprendi a desligar as antenas, desfazer-me da necessidade eterna de despedida, do "adeus", de ver o fim em tudo que cresce e acontece, pelo desespero de não querer nunca o abandono ou o desaparecimento sem corpo que prove a morte.

Encontro então o prazer de sentir a mim mesma e sentir bastante, pernas, músculos, tudo tão tenso, tão duro e apertado dentro de mim! Prazer incomensurável ao sentir meu corpo em espasmos, esquecer que poderia prever, mas não há tempo e eu digo "what do I do?" e vrumpt, estou presa e já nem sei mais que Língua falar. E não quero a minha língua e nem a tua. Não quero a nudez, a preliminar, o sexo. Não quero a sedução, o ato é em si o verdadeiro tesão, a garra, a força, a consciência de dois corpos agarrados. Não me importa teu cheiro, sequer tua saliva, teus gostos e desgostos. Quero a força do ato em si, do poder dele, único, sem futuro, sem finalidade aparente, sem finalmente. Cansei-me do pedido eterno de despedida, do gozo, da exaustão e deleite do fim. Quero a luta sem glória, sem medalha, a luta por lutar. Quero sentir dores onde nunca pude imaginar, meu corpo se jogando ao chão, sem medo da queda, quero a minha cabeça rodando, minhas labirintites se anunciando, minhas cãibras, minha sede. Quero a água da garrafa jorrando por fora da boca, molhando a cara, escorrendo pelo pescoço quente. Quero abrir minhas pernas por cima dos teus quadris, apertar teu estômago, espremer meus dedos em teu quimono, rir dos erros com você, tentar novamente e ganhar ou perder. Quero você em cima de mim, quero sentir teu corpo pesado, espremendo-me, suado também, sem intenção de mais nada. Quero aprender, quero que você seja mais sabido que eu, que você saiba qual o meu próximo movimento, quero que você tenha em mãos o dom da antena, o dom da previsão. Quero ver tua faixa colorida na cintura para sentir o prazer do respeito, e a minha tão branca, eu tão pouco, eu tão sem saber. Gosto de sentir minhas juntas se abrindo, sinto prazer da consciência dos pés, das pernas, das costas no chão, do virar por cima, dos panos entre, do não pegar na pele, pegar com o peso do corpo, sem falsas delicadezas, sem falsos pudores, sem tolas mãos. Um corpo pegando outro. Um corpo pesando outro. Dois num só, sem desejo de fim, um estar vivo impróprio, pois, se um dia eu precisar defender-me, não será de você, e, as medalhas, dispenso-as. Nossos atos, nossos passos no tatame diferem-se dos voos dos pássaros, tão vagos, e eu tola procurando neles concretude...

Quero a precisão e a beleza do movimento, onde poucas palavras bastam, ou nenhuma mesmo. Quero me esquecer dessas, que percorrem por todo o dia o meu corpo, frenéticas, desequilibradas, enfermas. Quero o silêncio de dois corpos. Quero me sentir macia sobre ti tão rígido. E saber que a maciez pode virar força. Quero espremer as mãos no teu pescoço, ver meus dedos lá marcados. Ouvir tua risada, escutar meus nervos pulando dentro de mim, as águas - não aquelas da libido - mas as que escorrem desinteressadamente.

Sim. Eu escapo. Saio por debaixo, empurro-o, viro-o e percebo que tolos são os pássaros que de nada sabem sobre força, tesão pela vida, um corpo pressionando outro, a luta. O prazer do sorriso compartilhado, o prazer de saber que conseguimos, que tentamos, tentamos, repetimos, repetimos até a plenitude de sentir uma bela queda, nem que seja por tão pouco tempo num dia tão longo, nem que seja.

27 comentários:

  1. Suzana,

    Pura adrenalina te ler.
    A sensação que tenho, é que tudo que leio, eu absorvo, e depois extravaza tudo pelos meus poros.

    Sim, eu já quis tudo isso ai descrito, um dia.
    UM DIA.
    Posso até querer essas coisas novamente, mas tem uma frase ai, totalmente MINHA!

    EU ESCAPO.
    É...

    Um abraço, minha amiga de todas as minhas horas.
    Minutos, segundos.
    Desse tempo, que nunca para!!!

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  2. Amo te ler...

    Lutei e luto até hoje...estou com meu segundo mestre....pois com o primeiro, isto tudo oque descreveu acima...acabou não no tatame...mas na cama...e foi bárbaro...lutamos e nos amamos...e eu não quiz escapar...fiquei...cedi...aceitei...me deixei ser mulher, sem a necessidade da força...cedi ao que estavamos querendo há tanto tempo, em tantas e tantas lutas aprendidas...


    beijos com carinho de sempre!

    Bia

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  3. O recato da espera
    Coadjuvante assentida
    O olho que tudo vê
    A mão que se estende
    A boca sedenta
    Água que não sacia
    Lucidez
    Fuga
    O despertar
    A divina sensação de renascer,
    A descoberta
    O conhecimento do corpo
    Músculo teso, rijo
    Reflexos aguçados
    A iniciativa
    A ação
    O ato
    Sem vencedor nem vencido
    Sem sexo
    Sem nudez
    Só tesão
    E basta!

    bjo

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  4. Leão e o Amor
    O Leonino típico adora o amor, adora estar apaixonado e gosta dos amores espetaculares, arrojados e dramáticos. Ele é romântico e generoso e adora dar presentes à pessoa amada. E sabe escolhê-los muito bem, para impressioná-la e conquistá-la. E também para merecer sua eterna gratidão. Quando o Leão se apaixona, ele se apaixona pelo amor, pelo ato de estar apaixonado, e segue à risca todas as regras deste amor. Como numa peça teatral, como num palco, sempre estará surpreendendo o ser amado. O Leão tem um coração ingênuo e confiante e nunca aceitará uma traição. Trair sua confiança é algo horroroso para ele e nunca será perdoado!
    Em troca, você terá lealdade e proteção, como os cavaleiros faziam com suas amadas. Ele, o cavalheiro, será capaz de grandes gestos, e corajosamente viverá seu amor até o fim ou se retirará, magoado e frustrado, se as atenções do ser amado não recaírem inteiramente sobre ele.
    O que o Leão quer é o amor total, mitológico, heróico, portanto não espere um relacionamento calmo e tranqüilo.
    Por isso tanta intensidade no sentir...
    Beijo
    Denise

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  5. Repreender sonhos é morrer um pouquinho, não? Eles seguem, muitas vezes maiores que a própria vida. Sonhar é bom é uma forma de escape.

    BeijooO*

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  6. Su,

    Não tem nem como falar do texto, pq é perfeito do início ao fim.
    É de uma força feminina, que poucas mulheres e poucos homens assimilam.
    O escape! Aquele que se ganha com o tempo, com as tentativas de ser ou fazer acontecer.
    O escape, de quem entende que a vida é o agora, onde ela acontece.

    Bjocasssssssss

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  7. Tentar, partilhar, rebolar, insistir, cair, levantar, apertar, tentar...
    Viver assim, tão intensamente, é querer saborear a vida, senti-la, diluir-se nela...
    Suzana, lê-la é puro tesão...

    Beijo :)

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  8. Fale a língua do coração, essa só nos causa a liberdade das escolhas.
    Acho que falei bonito agora, diz aí?!!

    Beijão

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  9. Com palavras e frases fragmentadas você diz,a essência de uma vida, vivida, em pura adrenalina.
    Abraço

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  10. Respondi lá no meu blo, mas te respondo aqui também.
    Conhece aquela música:
    Quem não gosta de samba, bom sujeito não é, ou é ruim da cabeça ou doente do pé...
    Doente do pé é quem não sabe sambar.
    Eu não sei sambar, Dona Lily, mas gosto de ouvir, gosto do carnaval, gosto das mulatas.
    Gosto de tudo que é do Brasil, principalmente as mulheres!

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  11. Gosto de você, menina linda!!!Simplesmente sou autêntica!Rsrsrs!!!
    Um beijo com meu carinho,

    Bia

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  12. 'Quem espera sempre alcança!'

    E olhe que sou das que acreditam que os ditados populares, fruto da experiência coletiva, são infalíveis, por mais que os ignoremos, por mais que os desvalorizemos, que os julguemos tolos...

    Principalmente quem espera como você, Suzana/Lily, como um fio de alta tensão - a ponto de explodir o acúmulo do que discorre: paixão, tesão, prazer, sedução, sentimento... amor. Como um bebedouro: pra matar as sedes do mundo, do outro, ali do lado, através da tela, depois do oceano, no mesmo plano, dos passarinhos...

    Espera de antenas ligadas, como quem já conhece todos os prazeres - o dos sorrisos, dos pesos, das levezas, dos líquidos - e aguarda apenas o momento de revivê-los.

    Beijos, queridas Suzana/Lily!

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  13. Suzana querida,

    sonho, vôo, sigo e escapo. rs...

    Eu sempre brinco que tenho asas, mas não consigo ser pássaro por muito tempo, rs.

    Beijos querida!!^^

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  14. Adorei o cenário do início,
    parecia ser uma pracinha!
    Aceitando, admirando e mais ainda
    se regenerando!
    O incomodo dos
    dos pássaros! Na verdade
    são urubus subentendidos!
    Esperando aquele corpo, cair, desistir!
    Tái o escape, a vontade, a luta!

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  15. Ai minha querida Suzana... Luta eterna mesmo, na qual eu já estou cansada e nao sei ate quando terei forças para continuar lutando... =\ Um beijao querida!

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  16. Nossa!
    Esse texto é muito belo.
    Encanta do começo ao fim.
    Nem que seja...
    Tudo ficará bem , mesmo que a canção não toque.

    Bjinho.
    Fernanda.

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  17. Nossa Suzana!
    texto maravilhoso! quente na medida certa e arrebatadoramente sexy! na harmonia exata de suas palavras você disse muito, como naquelas obras renascentistas onde o pintor escondia o seu melhor nas linhas de fuga, gostei de tudo! até mesmo do que está entre as linhas...que venham os pássaros, as noites de verão, a brisa das tardes, que venha a noite...você está preparada!
    Maravilhoso!

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  18. Deixou-me em deliciosa vertigem, moça.

    Beijo grande!

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  19. Oi, minha querida Suzana!!

    Nossa!!

    Esse foi lá no fundo mesmo, heimmm?
    Que isso garota, voltou com a corda toda, com esse coração cheio de Amor?
    Que bom isso querida, saber que esteja feliz e, postar algo tão profundo e maravilho assim...
    Um lindo fim de semana pra Ti, minha querida Amiga..

    Bjs em seu coração

    Marcio RJ

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  20. " não quero a sedução....quero a força do ato em si."
    que bom ler vc. Que bom.
    Maurizio

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  21. Maravilhoso, Suzana!

    Como você escreve com ritmo e musicalidade!
    Embala a gente. Dá vontade de ler e reler sem parar. (Mas confesso, envergonhada, quase culpada: só li três vezes...)

    Beijos

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  22. Menina
    fiquei inebriada
    vc levou-me direto a um período da qual não esquecerei.
    Resumo ))))))------ Adorei

    Bjnhos em SolM a vc

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  23. Sabe? Gostei de te ver lá em casa...
    Gosto de parender e em cada cantinho que tenho me aninhado, vejo sabedoria linda.
    Esse texto me encantou mesmo!
    Bom te ler.

    Beijo.
    Fernanda.

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  24. «Quero a precisão e a beleza do movimento, onde poucas palavras bastam, ou nenhuma mesmo. Quero me esquecer dessas, que percorrem por todo o dia o meu corpo, frenéticas, desequilibradas, enfermas. Quero o silêncio de dois corpos. Quero me sentir macia sobre ti tão rígido. E saber que a maciez pode virar força. Quero espremer as mãos no teu pescoço, ver meus dedos lá marcados. Ouvir tua risada, escutar meus nervos pulando dentro de mim, as águas - não aquelas da libido - mas as que escorrem desinteressadamente.»


    sem comentários. emocionou-me até o osso!

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  25. Não li esse texto qdo foi postado, mas tenho o prazer de fazer agora, nesse fim de tarde desse sábado, no qual a ilha é banhada por chuvas, no qual escrevi um texto que espero um pássaro-felino-homem pousar por aqui...
    Beijos!

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