quarta-feira, 15 de setembro de 2010

DA MINHA MANIA DE GRANDEZA...

fotografia, por SCG



Eu quero ser o cara que era no meu sonho

Quero estar no teu sonho também...

Ser o primeiro, o segundo, o terceiro.

Ser cama, ser prazer.

O orgasmo fingido e o verdadeiro

Ser super-herói

Talvez só super

Talvez só herói

Ou nenhum dos dois

Num país distante ser estrangeiro

Ser a incoerência dos teus pensamentos

Eu quero ser o vento

Ser a música dos Beatles

E o gaúcho da fronteira



Eu quero ser o cara que eu era no meu sonho

Quero estar no teu sonho também

Ser o artilheiro do campeonato

Distintivo no peito, bola na rede

O grito de gol

Ser os segundos que antecedem um beijo

Ser o próprio beijo

eu quero ser Deus, mesmo quando todos forem ateus

eu quero ser ninja, e quebrar tua cara

ser macaco gordo, e quebrar teu galho

ser a chuva em tempos de seca

um suspiro, o marcha lenta

ser três pratos de trigo

para três tigres tristes

eu quero ser as palavras vagas que saírem da tua boca

ou um poema do Mário Quintana



eu quero ser o cara que eu era no meu sonho

quero estar no teu sonho também

eu quero o amor da princesa

corpo de mulher, olhar de tristeza

e dela ser o príncipe ou talvez o sapo

ser charme, ser don Juan de Marco

ser trigo em época de colheita

ser cachorro, ser um gato

arrepio de quando teus pés descalços tocam areia da praia

ou de quando minha língua percorre teu corpo

ser cachaça nos botecos do mundo

ser Romeu ou uma Julieta lésbica

samba nos pés da mulata

um tango em Buenos Aires

eu quero uma estátua com meu rosto

por tudo o que eu ainda não fiz

ser o trem, o trilho, maquinista,

passageiro que se apaixona pela menina de cílios longos

ser o texto que nasce então em mim,

ser a tua incompreensão

um bordão tantas vezes repetido

tão gasto quanto meu tênis velho

ser o gol de placa

ser o pulo, ser o soco no ar

Eu quero ser Pelé.



Eu quero ser o cara que eu era em meus sonhos

Quero estar nos teus sonhos também

Ser os Deuses de Raquel

As mãos do médico que traz a vida

E as do coveiro encerrando o ciclo

O voto nulo, ser capa de jornal

Eu queria ser muito mais destino

Muito menos distância

Escapar por entre teus dedos em meio a noites errantes

E fazer de mim teu lar

Ser milagreiro, benzedeiro, batuqueiro, pagodeiro,

ser o bilhete premiado

Ser o amém em todas as orações

a noite em claro

o cochilo no ônibus

o Dinhoinho dando risada, o velho jogando dominó

o frio na beira do Guaíba

o Beira Rio em dia de grenal

ser Figueiroa e cabecear naquela fresta de sol



eu quero ser o cara que eu era no meu sonho

eu quero estar no teu sonho também

tuas mãos lavando teu corpo no banho

um delírio, um pedido de perdão

ser vírgula num texto que ainda nem foi escrito

ser o revólver com o qual Hitler se matou

ser tudo o que eu não posso

os sorrisos das ninfas

o caminho pras Índias

um desequilíbrio, um soluço, um copo a mais na tua sóbria embriaguez

os rastas do Bob

cantando por liberdade e um pouco mais de paz

ser Nero pra colocar fogo em Roma

ser dedos pra acender o teu,

passos calados de becos escuros

ser gritos, sussurros

lembranças de alguém que quer esquecer

ser a luz do fim do túnel

ser a luz de uma vela

num jantar romântico, num batuque de uma encruzilhada

um filme de terror, um conto de fadas

ser Peter Pan e virar criança pra sempre na Terra do Nunca



eu quero ser o cara que era nos meus sonhos

eu quero estar nos teus sonhos também

ser o leve movimento das asas de uma borboleta

ser um furacão destruindo tua cidade

o brilho de um olhar

um político honesto, um milagre

um abraço, um adeus

ser a mosca da sopa, a massa da sopa, o caldo da sopa

ser um prato de sopa também

mas prefiro ser esta metamorfose ambulante

ser Raul Seixas

ser o lenço vermelho, guerreiro maragato

ser Sepé Tiaraju, índio flor de guapo

a história contada, a história vivida

o mais valente

ser um certo capitão Rodrigo

ser os continentes do Érico Veríssimo



eu quero ser o cara que eu era no meu sonho

quero estar no teu sonho também

quero ser o formato daquela nuvem

fogueira de São João

ser aquele amante à moda antiga, do tipo que ainda manda flores

ser Roberto Carlos, ser tantas emoções

uma estrela cadente, uma estrela do rock

ser livro empoeirado na prateleira

ser meio, ser fim,

ser véspera de feriado

olhar que fala calado, esquinas de ruas que eu nunca andei

veleiros perdidos por mares distantes

guerreiros antigos, soldado, ser rei

ser um mendigo, ser um pivete, ser Jesus Cristo

teu último pensamento antes de dormir

aquele que lentamente se transforma em sonho

por que eu quero ser teu sonho também...



Um texto de Rafa Feck.