domingo, 2 de abril de 2017

Uma carta para M. M.



Los Angeles, 2 de abril de 2017.


Hoje é domingo. Pela janela descortinada, sopra vento levemente frio, chega a mim o som dos carros na avenida. Tudo calmo, à espera de amanhã. Talvez tenha sido um dia de sol, praia, pessoas nas ruas, satisfeitas pela chegada da primavera. É abril. E eu nem vi. Não vi o dia, os meses, não estou vendo o ano passar.

Talvez, eu esteja apenas ocupada demais, preocupada demais, talvez, eu tenha visto esse ano percorrer noventa dias, sim, e finjo que não vi; por ser mais fácil. Talvez, repito, eu tenha vivido intensamente, à baforadas de ar, forçando pulmões e pernas, forçando a coluna ereta, o olhar elegante, assim, como se carregasse livros na cabeça...

Talvez é uma palavra quase covarde.

Querida M. M., escrevo-lhe essa carta porque, em uma noite solitária, absorvida por palavras alheias, eu reclamei não ter destinatários para uma eventual carta, para um encontro assim, na forma mais amorosa de alguém compartilhar rotina, boas notícias, más, uma certa melancolia, um certo desejo de forçar esperança... qualquer coisa. E você, então, disse-me, "Escreve para mim".

Cá estou. Vejo a tarde definhar diante dos meus olhos, sentindo o cheiro forte de lavanda na almofada em que me recosto para escrever. Hoje, mais cedo, deixei um vidro da essência se quebrar. O que salvei do produto eu passei em alguns cantos do meu quarto. Gosto das essências de lavanda e limão, elas acalmam e ao mesmo tempo revigoram. 

A vizinha está em casa, ouço música vindo do seu apartamento. Ouço também o barulho da minha máquina de lavar roupa, ouço uma sirene ao longe. Ouço tudo. Vejo demais. Estou exausta, minha amiga. Pareço um animal acuado, anseio apenas por um canto para não mais interagir com o mundo, e, somente esperar; esperar, esperar. 

Esperar o quê, você me perguntaria... claro! Esperar o machucado ou seriam os machucados... sim, esperar os machucados sararem.

Já posso dizer, é noite. É noite na costa oeste americana e eu gostaria de estar justamente aqui e ao mesmo tempo, bem longe, em um país distante e desconhecido, para poder dar uma risada, uma única risada, que ecoaria no poço da desgraça, fazendo subir e descer o som, na cadência de um velho balanço de jardim.

Talvez é uma palavra covarde. Então, direi a você, a única certeza que tenho é que o mundo é o cão deitado, na soleira da porta, que deixa qualquer um passar. O mundo é o cão que permite que um ou outro ultrapasse limites, e dá até licença... Mas, toda manhã virá, enfraquecerá em tarde e morrerá no escuro do olho desse cão. E esse cão morde na hora que quer, no tempo que desejar e, jamais, lhe dará alívio se não for a hora.

Certa disso, essa tal risada é totalmente desnecessária.

Recosto-me na lavanda, sorrio ligeiramente, descanso todas as dores em meu peito e escrevo-lhe, ofício esse acalentador. Tudo está em seu devido lugar. Eu estou. Você está. O dono do poço da desgraça também.

Inclusive o cão.

É mais do que noite. A lavadora ainda bate. A vizinha desligou o aparelho de som. A cortina fechou-se por conta do vento frio e fino...

Deixo-lhe um beijo e o meu muito obrigada por me ler.

Suzana


Por Suzana Guimarães.

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