quinta-feira, 24 de maio de 2012

QUAL O TEU MEDO?



Adriana sofre um longo tempo antes de viajar de avião. Na viagem, ela não ingere líquidos. Adriana morre de sede e vontade. O cara ao lado dela derrama coca-cola pela boca. No avião, ela não usa o banheiro, ela tem medo de fazer xixi no banheiro apertado da aeronave, mesmo que a viagem dure quinze horas ou mais. Miguel é engenheiro. Ele não assina documentos em frente aos outros, e, por isso, evita reuniões. Sandra não come em público. Carlos deixou de visitar o melhor amigo no hospital, em seus últimos instantes de vida, porque não entra em elevador. Há quem tenha medo de aranhas, baratas e eletrodomésticos.

E você? Qual o teu medo? Não se encabule se você esconde algum, mas também não ria, se você for a própria coragem em pessoa. A espécie humana só existe porque teve e tem medo. Foi o medo que nos preservou.

Adriana é uma profissional realizada, tem marido e amigos. O seu medo por avião não afeta a sua vida. Miguel é um dos sócios de uma empresa de engenharia, deixar para assinar os documentos em casa ou sozinho em seu escritório não prejudica em nada a sua profissão. Sandra deixou todos os seus familiares e amigos cientes de que ela está sempre de dieta e, em casa, come sem mastigar, com voracidade. Carlos perdeu várias chances de ascensão profissional e até o amor da sua vida porque ele não entra em elevadores. Carlos evita ao máximo, e, quando não consegue isso, sofre antes, durante e depois do passeio na caixa quadrada. Sofre depois, de vergonha de si mesmo.

Evitar o contato com insetos, bichos, eletrodomésticos e esportes de risco é fácil e não muda o destino de ninguém. Evitar o medo de ter medo é penoso.

Carlos sente medo só de pensar em estar num elevador. Por isso, sua vida é toda calculada em cima disso. Ele faz previsões, investiga antes, dispensa com facilidade, não conta para ninguém porque se sente ridículo por sentir medo de algo tão corriqueiro, que todo mundo faz. Carlos, em algumas ocasiões, se prepara antes bebendo vodca, porque a bebida, além de acalmar, não tem cheiro. Ele carrega uma garrafinha no bolso do paletó. Mas, pouco adianta. O medo lhe alcança bem cedo, ele sente calor excessivo, treme as mãos, a sua mente fica perturbada, confusa, ele não consegue conectar os pensamentos. Ele só pensa em fugir ou terminar logo com aquilo. Carlos é de bem com a vida, seria plenamente de bem se não existissem elevadores. Ele tem um bom emprego, amigos, é um cara socialmente muito bem visto e querido. Ele namora. Ele tem planos para o futuro, mas tudo precisa estar abaixo da altura de quatro andares. Às vezes, ele sobe todas as escadas de um prédio de onze andares, mas nem sempre isso é possível, e há muitos arranha-céus na cidade onde vive.

Ele já pensou em mudar de endereço, morar na roça ou numa cidade bem pequena, mas ele não pode, tem medo de mudar seu 'status quo'. Ele já pensou em procurar o seu grande amor, contar tudo a ela, mas ele não pode, ele não consegue. Carlos sofre em silêncio há uma década. Sabe ao certo quando tudo começou, o primeiro dia de horror, de medo, quando se sentiu desconfortável e tonto dentro de um elevador que subia muito rápido e, de repente, parou e ficou entravado entre dois andares. Quando o socorro chegou, as pessoas presas pularam para fora, com ajuda do porteiro do prédio e do técnico, chamado para o conserto. Carlos não quis pular, sentia-se tonto, tudo rodava e ânsias de vômito o deixavam envergonhado. Após o ocorrido, Carlos seguiu em frente, chegou a se esquecer do mal sucedido, até que num dia comum, sem explicações possíveis, dentro de um elevador que subia para o vigésimo quinto andar, ele começou a sentir medo.

Carlos evitava elevadores, depois, passou a evitar aviões e o medo, tão pequeno no começo, agigantou-se. Hoje, ele tem seu próprio e tímido negócio, largou seu trabalho numa grande empresa multinacional, tem uma namorada que não lhe atrai muito, mas nunca faz perguntas e mora no primeiro andar de um prédio de três níveis. Ele deixou seus sonhos num canto de sua vida, faz de tudo para esquecer e se sentir bem, mas ele não é a Adriana, nem o Miguel e sequer a Sandra. Ele é ele próprio, igual aos demais, mas ele tem um problema, uma doença, e ele precisa de ajuda, mas, para Carlos, medo é apenas motivo de riso ou desprezo.


por Suzana Guimarães



Nota: texto a ser publicado na Revista MOSTRA PLURAL, em 30 de maio de 2012. Por erro meu, publiquei esse texto no Facebook, hoje. Nada mais podendo fazer a respeito, fica aqui também registrado.