segunda-feira, 1 de maio de 2017

Uma carta para M.



(arquivo pessoal de SCG)



Em frente ao mar, maio de 2017, ainda primavera.


​Querida M.,


Hoje, o mar parece seus olhos, na cor, na calmaria, no brilho. É belo, assim como você, minha amiga.

É cedo, pessoas saem da igreja, eu saí, acabei de atravessar a avenida e me sentei neste Café em que estou para refletir, descansar e aguardar. Hoje, faz um lindo dia. Minutos atrás, eu senti redenção, enquanto caminhava para a igreja, enquanto lá dentro eu estava e muito mais ainda quando alcancei a rua. O mundo parecia feliz. Hoje, havia duas guardinhas de trânsito (Crossing Guards)​, e a novata estava muito sorridente, usava um chapéu de aba larga... moça alta, nova, feliz da vida. Vivo em uma pequena comunidade e eu me senti, hoje, num passado muitíssimo remoto, onde pessoas se cumprimentavam nas ruas, as mulheres usavam vestidos de saia rodada - eu estou de vestido, laranja, quase seda, quase crepe... Por segundos, naquele instante, no cruzamento de ruas, eu ouvi muito mais que todas as vozes presentes, todos os cochichos e barulhos de carros, as risadas da moça de chapéu, o "good morning" da outra... Eu ouvi além.

​Sentei-ne nesse Café por que, como eu disse, preciso estar comigo por alguns instantes. Os últimos dias foram agitados e exaustivos. Estou de mudança, vou para a costa leste americana, viverei por um certo tempo em uma megalópole, o que um pouco me preocupa pois deixei as grandes cidades há oito anos. O caminhão de mudanças já partiu, levou meu carro. Quando eu subir para o meu destino, o farei de avião. Sei, você deve estar se perguntando a razão de eu não pegar as estradas novamente... vontade dá, subir de carro, viver a experiência de trilhar o caminho pouco a pouco, hotéis baratos, a visão dos dias nascendo e morrendo e meu carro avançando. Mas, não é hora. Como eu disse, estou exausta. Dias e dias desmontando um apartamento, doando e vendendo coisas, jogando muitas outras na lixeira. Hora de reciclar! 

Parece sina, não é? Desde sempre, desde ainda dentro da barriga da minha mãe, estou locomovendo-me de residência em residência. Parei de contar, parei de tentar relembrar os nomes daquelas ruas onde vivi...​ e esse não será meu último endereço, com certeza, ficarei dois anos e depois de nada sei...

Sobre o meu sentimento de redenção, eu poderia dizer-lhe que estou a livrar-me da pena da mágoa e da raiva, principalmente da primeira. Você sabe, sou lenta em minhas emoções, preciso de tempo, muito tempo para fazer acalmar o que revira-me por dentro. Hoje, M., eu me lembrei de uma pessoa e senti com + paixão. Assim mesmo, do jeito que escrevi! Tive com + paixão por aquela insana criatura que se divertiu enlouquecendo-me. Claro, ela, a pessoa, não fazia festa, soltava rojões e gritava pelas ruas suas maldades para comigo - talvez, nem tivesse a devida consciência do mal -, mas, com certeza, antes, durante e após nossos desentendimentos, ela acariciava seu ego como se acaricia um bichinho de estimação... Livrei-me! Ela está "ferida de guerra", de suas próprias guerras, e, agora, posso parar para refletir, olhá-la e senti-la. Silenciosamente, estamos em simbiose. Nossos machucados viraram um só. Então, por isso, sinto com (ela) paixão. 

E você, M.? Como você está? Tenho notícias das suas viagens, sei dos seus bons momentos com seus filhos, mas eu queria saber mais, queria saber o que caminha neste seu coração dengoso e arteiro... quero saber como vai a vida na sua cidade. Fala-me de você por estas ruas que ainda não conheço...

O cheiro de maresia está forte. Li algo outro dia, não me lembro o autor, contudo, "Metade de mim é maresia". É a primeira vez que moro em uma cidade praiana e deixá-la já está doendo. Como quase todo morador, não "vivo" na praia, como alguns imaginam e sonham, mas eu sei que ele está ali, o mar, e sei que, quando preciso, ele me recebe, abarca-me em suas águas sempre geladas, mas limpas. 

Estou me despedindo. Estou saudosa, mas animada. Aprecio coincidências - elas não existem! -, mas sentir essa com + paixão justamente agora, nesses dias de mudança, renova minhas energias.

Brindo esse dia com chocolate quente e essa carta para você, minha querida amiga! 

Beijos!


Suzana


Por Suzana Guimarães

4 comentários:

  1. Lindo! Um grande abraço minha escritora e poetisa querida.

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  2. Oi Suzana, boa tarde! Eu estava pesquisando por "Simone Guimarães" e "Estrela de Rua" recitado por Cora Coralina, a única referência que encontrei foi no seu blog em 2010

    "O Tuca enviou-me a imitação, gravada pela Simone Guimarães, da voz de Cora Coralina recitando "Estrela de Rua". Ao ouvir, chorei."

    Achei tão legal, por isso comento contigo uma outra versão sobre a origem dessa gravação.

    Em 2008 eu da equipe de TI da PGR aqui em Brasília e um dos procuradores me veio com um pequeno gravador pedindo que eu exportasse o áudio para mp3, era o tal poema de Simone Guimarães na voz de Cora Coralina, tão lindo!

    Ele me contou que gravou pessoalmente numa visita a ela nos anos 80 não sei se em Ponte do Rio Vermelho ou em Goiânia.

    Abraços!


    Link para o áudio:
    https://www.facebook.com/muriloradicchi/videos/vb.1446538162/10209681645385027/?type=2&theater

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    Respostas
    1. Muito obrigada, Murilo!

      Ao ouvir a imitação, eu também chorei! Tentei publicá-la no blog, mas eu não consegui, inclusive comentei com o Tuca e ele não sabia como fazer. Sou péssima com tecnologias...

      Compartilhei no Facebook o poema acima, o link. Muito obrigada, é muita gentileza da sua parte!

      Por conta da sua lembrança e do seu comentário aqui, eu ouvi novamente a música "Passas por Mim", da Simone Guimarães, e, novamente agradeço, eu sorri, era a música que a minha mãe colocava para o meu pai ouvir em seus últimos meses de vida. Chegou em mim um bálsamo... obrigada!

      Grande abraço!

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