quarta-feira, 15 de maio de 2013

NÓS SOMOS FLORES EM UM QUENTE DIA DE MAIO*

Fotografia gentilmente cedida por Andrea de Godoy Neto
 
 
 
                                             Para Andrea de Godoy Neto
 
 
Toda manhã, passamos nós, quase os mesmos.
 
A mulher estaciona o carro, ou de um lado, ou do outro, onde há vaga maior. Eu a vejo. Sai do carro, bate a porta com displicência, aciona o alarme e caminha sempre para o mesmo lugar, tenho certeza, para a igreja da outra esquina. Uma outra passa de bicicleta, lenço na cabeça, chapéu de pano, óculos escuros. Pedala devagar e bem no meio da rua estreita, e, como eu já sei que ela não pensa em morrer, faço a curva de todos os dias, no mesmo lugar, na quase mesma hora, da mesma forma, quase lentamente. O homem de branco, cabeça branca, tênis também brancos caminha cumprimentando a todos que passam. Ele pensa em cumprimentar-me, tenho certeza, mas não o faz.
 
O que é que faço naquele lugar? Cumpro um ritual.
 
Andrea, nada aconteceu, acredite, tudo apenas acontece. Ontem morreu. Escuta, toda manhã é quase sempre a mesma, mas ela existe e tudo o que não existe é que faz tremendo esforço para acontecer. Tenho tido sonhos repetidos, neles, despeço-me dos que amo porque estou de partida para bem longe, estou de mudança, deixarei meu país e todas as minhas comodidades, meu passado... e eu choro copiosamente... acordo angustiada, pois o sentimento é terrível, parecendo perda eterna, último adeus... Porém, quando percebo a minha cama, vejo meu quarto, identifico o espaço, constato o óbvio, já fui embora, já fiz, já aconteceu. Não acontece mais o que não mais é.
 
O que tinha que ser se fez em ordinário dia, sem vela, sem reza, sem régua para medir, sem calculadora, bastou o estar. É tão leve, tão suave, que emerge naturalmente igual à chuva que cai, lenta e contínua em cima do telhado, a grama que nasce nas ranhuras do cimento, a palavra nascida. Tranquilo voo do pássaro que ninguém vê, porque canta todo dia, naquela mesma árvore...mas é onde tudo acontece, no cotidiano insípido, porque o voo se faz, voando.
 
Quando eu parti, Andrea, não chorei, nem lamentei, ninguém pensou que aquilo era a morte, aquilo tudo o que aconteceu foi tudo o que deveria acontecer. Os recorrentes sonhos são lembranças do que nem foi, pois muita coisa ocorre apenas dentro de nós.
 
A menina que haveria de nascer já nasceu. Xi Pan já retratou mulheres que poderiam ser nós. Charlote foi à França e Dom está na janela, olhando a rua. O trem partiu há pouco. Helena terminou o curso de Espanhol e a solitária mulher de muito longe está em um curso de tapeçaria... O tapete arraiolo está pronto. A carta? O carteiro acabou de deixá-la na entrada da tua casa, talvez, talvez.... quem sabe... você ainda não a tenha visto.
 
Amanhã, estarei lá, novamente, e também a mulher, a ciclista sem medo da morte que sorrirá para mim e o homem que caminha em suas manhãs. Tudo sempre parecendo o mesmo, nós quase os mesmos, porém, uma minúscula certeza, algo feito um banho, um novo respirar, algo extremamente sutil e sem muita significância palpita esperando o seu momento. Quem é esperto, espera.
 
Por Suzana Guimarães.  
 
 

 * por Ana Luísa Guimarães Meneghini - versão original: "We are flowers in the hot Day in May".