sábado, 29 de maio de 2010

XIII - Maio de 2004


     Após a cura, ou melhor, a partir do tratamento, vêm as revoluções. E, depois do revolver interior, tão solitário e pessoal, não se volta atrás.
     Mudei muito e R não. Sem a minha cegueira e a tortura paralisante, passei a vê-lo como ele realmente sempre foi.  R mudou pouco, é quase o mesmo da época do nosso longo tempo de namoro. Dr.J disse que ele teria que se adaptar à nova pessoa que estava ao lado dele, senão adeus casamento. E ele fez e faz de tudo para que continuemos juntos. Mas há peculiaridades em cada um de nós que são tão entranhadas que não percebemos o tanto da sua gravidade e cometemos erros, ou mesmo esquecemos que o outro pode não gostar.
     A frieza de R é herança genética, e, coitado, nem ele pode com ela. Frio, mas irascível em certos momentos. Ele tenta melhorar, mas vive caindo no mesmo tropeço. R é uma rocha  fria e dura. Tínhamos vinte e um anos quando nos conhecemos e começamos imediatamente a namorar. Conheci R numa época em que eu tinha certeza das minhas dificuldades. Época da total consciência da minha doença. Pensei várias vezes em contar tudo para ele. Dizer que eu não entendia o que acontecia comigo, que queria muito conseguir fazer o que ele, e todos, faziam. Mas eu preferia que ele me visse bela e perfeita como imaginava ele que eu fosse. R era um desinfeliz em seu mundo familiar. R queria toalhas de mesa estendidas para um café ou um almoço. R queria menos filosofia. Mais contato físico. Menos teses. R também não havia se dado bem com as mulheres. Engravidou uma mulher que não era sua namorada, na primeira trepada, e então foi pai, aos dezenove anos. Ele vagava num mundo irreal. De realidade, só havia os empregos que batalhava para conseguir e conseguia. Sem muita ajuda de terceiros. Sem compreensão de ninguém. Ele era só. Se sentia só. Sabia o que queria, mas desconhecia a comunicação, apesar de nascido numa família bastante letrada. Considero a carteira de trabalho dele um de seus orgulhos. R precisava de mim. Eu tinha uma família, que, apesar das idiossincrasias de cada um, vivia muito bem. Unida, amorosa e forte. E, com toalhas estendidas durante as refeições. Um grupo forte para viver todas as dificuldades, todos os infortúnios. Minha família é a colcha de retalhos de tecidos extremamente ímpares, quase que impossível de se juntarem. Tecidos ásperos que se unem a sedas delicadas. Estampados que não se encaixam. Formas opostas. Porém, tudo muito bem costurado, pela minha mãe. Como ela conseguiu cerzir com tamanha habilidade, talvez um dia, quem sabe, eu possa descobrir. Minha família não é aquela que deu certo. Será que existe essa espécie? Será que existe aquela que deu certo? Entretanto, as costuras nos prendem, os cerzidos nos marcam de forma irretornável. E foram muitas as pequenas emendas, que minha mãe gastou tempo e reza, até fazê-las parecer poesia. Eu era a namorada dos sonhos de R:  bonita, inteligente e estudiosa. Por influência minha, ele estudou muito, fez amigos, conheceu aquilo que seria uma verdadeira família e eu não ia decepcioná-lo. Nem a mim mesma. Contar para ele seria impiedoso à minha pessoa. Eu precisava de R. Então, com ele, me tornei completa, uma bola fechada, totalmente preenchida, não mais linhas pontilhadas. Não mais uma paisagem solitária, com amores furtivos e deselegantes. Eu tinha um namorado vinte e quatro horas, que não me questionava nada e punha as mãos em mim na medida que eu queria. Você comentava o tanto que ele era presente. Lembra-se das constantes idas dele à universidade? Chegava ao ponto de assistir às nossas aulas. R estava em todos os espaços da minha vida. Nos espaços vazios também. Enfrentei o mundo para ficar com ele. Minha família considerava-o problemático demais. Meus irmãos tinham ciúmes dele. Minha mãe ora o aceitava, ora o rejeitava. Meu pai parecia gostar dele, apesar de nunca se pronunciar a respeito. A família dele nunca me aceitou de forma plena. Creio que eu descia pela garganta dos pais de R de forma espinhosa. É, eu devo ter sido o ouriço-do-mar que eles tiveram que engolir. As omissões, as palavras e as atitudes dos pais de R mostravam de forma clara para mim, que, para eles, R deveria ter ficado com a mãe do primeiro filho, aquela que ele sequer considerou uma namorada. Mas não fui eu quem os separou. Separou? Como separar o que nunca se juntou? Eu o encontrei livre, sem qualquer tipo de compromisso com outra mulher. Jogado numa lata de lixo, alvo de reprovações pela paternidade fora de hora. Cuidei dele. E ele de mim. Demoramos a casar por causa do meu medo, mas eu apenas dizia que ainda não era tempo. Eu comandava o tempo certo de todas as coisas. Eu gostava de me encostar naquela rocha fria e dura e esquecer da vida. Das minhas dificuldades. Dos meus medos. Com ele, eu podia muita coisa.
     Nós nos casamos, um ano após eu me encontrar com Dr. J. Naquela época, falei sobre a minha doença e ele entendeu tudo com tamanha compreensão que eu me deliciei. Contei para ele toda a minha história, numa noite, num bar, no mesmo dia em que fui pela primeira vez ao consultório de Dr.J. R passou a ser o meu cúmplice. Alguém que me tirava das situações embaraçosas e, para isso, até mentia. Ele jamais falou de mim, por mim. Se eu quisesse me explicar ou não, era decisão só minha. R fez o silêncio que se espera de uma rocha.
     Entretanto, ele tinha o hábito, que aumentou com o casamento, de não acreditar em minhas dores físicas. Acreditou na fobia, mas se recusava a acreditar em mim quando eu dizia estar sentindo alguma dor.
     Mas, esse assunto, vou deixar para outra ocasião.
     Hoje, estou cansada.
     Este e-mail é para eu me explicar melhor, pois, naquele churrasco em que nos encontramos, eu reclamei muito dele com você. Aproveitei os chopes para desabafar. Mas, eu não sei se você compreendeu-me. Primeiro, porque foi muita informação de uma vez só. Segundo, porque você bebeu mais do que eu.
     Este e-mail, vou enviar. Não ficará junto com os tantos outros que deixo guardados na pasta dos rascunhos. Lá, onde ficam os esboços de uma Suzana que poderia ter sido. E seus esboços, traçados por mim, também!
     Boa noite! Beijos.

2 comentários:

  1. Você sabe o resultado de tudo. Mas, para quem lê, fica o mistério. O tempo não linear, os espaços vazios entre um e-mail e outro. Ficam dúvidas. Uma delícia de ler. Uma ansiedade pelo novo post.
    Lembra do "Bater, soprar e tornar morno"? Seus textos também passam isso. Passei a buscar isso nas coisas, e encontrei nos seus textos. Mas vem tudo em um só. Vc transmite serenidade, lucidez, mas ao mesmo tempo uma energia forte. É firme com as palavras, diz o que pensa.
    Está sendo uma delícia de leitura!
    Beijos
    Carina

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  2. Oi, Carina. Você fez o comentário que eu ansiava ouvir. Agora sei que a mensagem está fluindo da maneira que eu esperava que fosse. Ando reescrevendo. Corto muita coisa e coloco outras, pois, como eu já disse em um dos posts anteriores, alcancei o distanciamento ideal. Mas os fatos são os fatos e por isso são imutáveis. Mutável é a minha visão de tudo o que passou.
    Sim, eu sei o resultado de tudo. Mas, será que há um resultado? Quanto à cura, não há sombra de dúvida. Eu me curei sim! Mas sei também que, uma vez colocado o pé lá dentro, nunca mais você estará totalmente a salvo. Mas isso não me preocupa nem um pouco. Desde outubro de 1995, quando encontrei Dr. J, eu tive apenas uma recaída. Já escrevi sobre isso. Ela ocorreu em 2004 e durou um certo tempo que não ultrapassou o ano de 2005. Mas, repito, isso é apenas detalhe, acessório. Não é principal para mim e nunca mais será.
    Os e-mails trocados durou apenas um certo tempo. Esse é um final que conheço. Mas a história continuou. Vieram as ondas do mar e me levaram, a partir de 2006. Na Carta para Dr. J, eu comento sobre a intensidade com que vivi os anos de 2007 e 2008. E, os dois últimos anos, vivendo em um outro país, me empurraram mar a dentro. Eu perdi, ao longo dos últimos quatro anos, qualquer tipo de controle formatado. Me joguei no mar em nado livre.

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