segunda-feira, 24 de maio de 2010
X - Março de 2004
Não são os seus sumiços que me entristecem. Eu até entendo o seu distanciamento de hoje. De hoje, porque os antigos, nunca perdoei.
Atrasamo-nos no tempo, você e eu. Ah! eu poderia dizer isso pessoalmente, mas eu o quero só assim, como sombra a me acompanhar, uma imagem, uma criação minha. Você é o sonho bom. Aquele que faz com que acordemos animados para o dia que está por vir.
O que me entristece em você, é que você cobra muito de mim. Cobra um posicionamento perante a vida que eu não posso mais ter. Não posso apagar o tempo produtivo que passou e eu não vivi. Você acha que eu deveria ter sido tudo, porque eu era tudo. Mas era tudo para você e para os outros, para mim eu era muito pouco. Pensei, por muitos anos, que eu tinha chiliques, fricotes de filhinha de papai ou algo semelhante.
Eu não sabia que tinha uma doença. Se eu soubesse... Se sequer desconfiasse, é claro que teria procurado ajuda médica rápido. Nunca fui indolente. Eu tinha garra, amava a vida. Sempre gostei de estudar, de me informar. Sempre li muito, mas eu que tanto li, não li nada a respeito. Você pensa que não vasculhei a biblioteca da faculdade? Vasculhei sim e nada encontrei. A Internet não era algo popular, acessível a todos.
Eu sabia de medos: de altura, de escuro, de raios e aranhas. Sabia de depressão e de manias. Tive um tio maníaco. Eu não sabia o nome da sua doença, nem tinha consciência de que era “uma doença” - pensava simplesmente “mania”. Era um tio “torto”, mas eu o adorava e por consequência, não dava relevância àquelas manias. Meu tio lavava as mãos por vinte minutos, olhados no relógio. Acordava às cinco da manhã para cumprir seu ritual no banheiro. Um ritual de lentidões e repetições. Esfregações, água e sabonete. Quando estávamos, as famílias juntas, em férias, dividindo uma mesma casa na praia – e que sempre havia um só banheiro – ele se punha no fim da fila na hora dos banhos e escovações de dentes. Não gostava de incomodar e nem de ser incomodado. Tinha o tempo todo do mundo para realizar sua meticulosa tarefa obsessiva. Ninguém na família nunca se aprofundou naquele problema. Ríamos apenas. Meu tio era dentista. Certo dia, ele estava em seu consultório, com certeza trabalhando, mas por alguma razão que apenas ele conhecia ou apenas sentiu – sem tomada de consciência – tirou o jaleco que vestia, colocou-o em cima da cadeira, deixou de guardar os instrumentos de metais que havia limpado, saiu pela porta, passou a chave e nunca mais voltou. Chegou em casa e se deitou. Deixou de tomar banho, de lavar as mãos e recolheu-se em profundo silêncio. A minha tia forçava-o a ingerir um ou dois copos de suco de laranja no decorrer do longo dia. Eu não fui vê-lo. Tinha medo de deparar com aquela realidade. Eu ainda não conhecia Dr.J. Eu ainda vivia minha realidade nublada, ainda tinha aquela visão distorcida, como se houvesse névoa nas coisas e tudo corria em câmera lenta. Ninguém conseguiu arrancá-lo daquele estado. Ele morria à mingua. Todos na família sabiam que ele morreria como num campo de concentração. Um dia, o sobrinho médico dele o levou para um hospital. Mandou injetar soro em suas veias e aquele fiapo de corpo não resistiu. Meu tio morreu. Eu o vi morto no caixão e levei um enorme susto. Por mais que eu tivesse imaginado o seu estado físico, não consegui chegar nem próximo da realidade. Meu coração doeu ao vê-lo tão magrinho, tão indefeso em meio a cravos brancos e amarelos. Mas eu, na minha visão curta, não questionei nada. Não pensei nos meus “problemas”, não percebi que as doenças escondidas e silenciosas podem matar. Acho que ninguém quis pensar ou falar do assunto, ou, se quis, não fez o devido mergulho. Boiou na superfície do que é mais seguro, das possibilidades. Das possibilidades, pois muitas vezes chegamos a ter a devida consciência e queremos consertar todo aquele estrago, mas o outro talvez não queira. Não aceita. Não quer pensar e muito menos falar do assunto.
No meu caso, estávamos na década de 1980 (a “coisa” começou por volta de 1983 e eu só encontrei Dr.J em 13 de outubro de 1995). Excetuando meu tio, eu não sabia de mais ninguém com “mania esquisita”. Sim, havia meu pai. Nunca falarei dos problemas dele, mas ele também tinha um hábito: gostava de contar dinheiro. Gastava bom tempo naquele ofício diário, constante. Contava e recontava, e, com a idade, passou a contar mais vezes ainda, o mesmo monte de dinheiro. Dizíamos que ele era o Tio Patinhas, que gostava de nadar nas moedas do seu cofre. Nunca demos importância àquilo também. Não fazia mal a ninguém. E quando ele se exasperava, dizíamos que ele tinha mesmo um mau gênio. Gênio do cão.
Sempre conversei muito. Uma tagarela sem freios. Passei minha vida conversando com todo mundo, estranhos ou não. E nunca ouvi alguém contar que sofria das coisas que eu sofria, mesmo que apenas semelhantes. Parecia todo mundo sempre tão perfeito, tão razoável, que eu não me atrevia a revelar uma vergonha daquelas. Se eu tivesse me aberto um pouco; talvez alguém pudesse ter aparecido e revelado algo análogo... Talvez! Mas eu não me abri. Engoli meu segredo e vergonha e pronto. Nada podemos fazer quanto a isso. Hoje eu sei. Tem muita gente por aí com medo. Tem gente que tem medo de comer em público ou de falar em público ou de usar banheiro de avião... parece ridículo, não? Mas é a realidade de muitos.
Entretanto, você sempre cobra de mim, e não cobra das suas mulheres. Tenho raiva disso. Você acha que sofreu mais. O seu problema com seus pais, eu sempre entenderei, mas com a sua ex-mulher não. Nem os seus problemas com as suas outras mulheres, ou "grandes amigas". Achei ridículo você se casar tão cedo, apenas porque a namorada cobrou casamento depois do hímen perdido, num ato desejado por ambos. Na realidade, você queria sair de casa, daí, aceitou a reclamação dela como boa desculpa. Pelo que ouvi na época, a donzela arrependida só quis você na cama para garantir filhos. E não o quis na cama, como não o quis na mesa, no banho, nas festas de família, nos encontros com os amigos e também não largava o osso que ela queria roer – você. Só que sofrimento não se mede. Não dá para saber quem sofreu mais, porque cada um sofre o tanto que lhe cabe. Cada um com suas feridas a lambê-las. Não se pode comparar porque não há como comparar. O ser humano é terra. Ou é terra dura, que não sente as marcas facilmente, ou é terra macia, daquelas em que as pegadas, mesmo que leves, ficam para sempre ali marcadas. A gente nasce assim: terra mole, terra fofa, terra pedregosa, terra dura, terra tratável, terra não tratável.
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