segunda-feira, 17 de maio de 2010

VIII - Dezembro de 2005

     “Não me fez bem lembrar do meu casamento, de tudo que vivi com aquela mulher. Tudo o que lhe contei hoje, na porta da sua casa, me desgostou. Na época, para mim, era aquilo mesmo. Eu me casei cedo porque queria sair da casa dos meus pais. Eu também fui ou ainda sou um engodo... Eu também guardo segredos. Não sou bom em lembranças, em datas, esqueço tudo. Não me lembro com facilidade do ano em que me casei. Tenho que parar para pensar e fazer contas. Mas posso dizer que me lembro da época em que desejei sair de  casa. Eu sofria do mal da dúvida. Sabe aquelas certezas que as pessoas têm, e que não admitem prova em contrário? Pois bem, eu não tinha a principal delas. Antes de me casar, por causa de um papel que chegou às minhas mãos, eu tive que fazer perguntas a mim mesmo e eu não gosto disso, como você sabe. Fiz as mesmas perguntas aos meus pais, mas as respostas... bem, nunca houve respostas... A minha mãe se tornava um pouco agressiva para responder e o meu pai apenas brincava. Resolvi deixar o assunto de lado, mas não esqueci e acabei me perdendo. Casei para não me perder de vez, mas a relação com ela nunca foi a de um casamento. Eu não sei o que é uma vida de casado. Passei por fim a aceitar as coisas como elas se apresentavam para mim. Amei a minha mulher, mas nós não podíamos nos amar porque eu não amava a mim mesmo e ela amava mais a família dela do que a mim. Procurei ou talvez tentei seguir o caminho certo, mas a dúvida da incerteza de mim ou como você me disse "a certeza da dúvida" me levaram para um caminho arenoso. Eu jamais conseguiria conviver com você mais do que foi. Você para mim era o modelo. Eu era apenas uma areia movediça. E tudo piorou quando eu me separei e principalmente depois que o meu pai morreu. Eu tinha esperança de que um dia ele pudesse esclarecer as minhas dúvidas ou dúvida. Da minha mãe esperei apenas comandos. E, da minha mulher, por todo o tempo, eu quis o  sossego de um casamento.
     Mas hoje, quando relembrei os fatos, e deixei você estarrecida, dizendo que achava tudo um absurdo, não sei, mas alguma coisa me incomodou, eu cheguei em casa irritado. Peguei minha moto e andei por aí. Não sei dizer o por que da irritação. Talvez, veja bem, talvez, por ter contado aquilo tudo para você, e ter visto a sua reação de espanto, eu me irritei. Não com você, não com sua reação, mas, talvez, veja bem, talvez porque, se ela ou eu fôssemos outras pessoas, ou pelo menos ela, as coisas teriam sido diferentes. Se meu pai ou a minha mãe tivessem ido até o fim na minha pergunta e provado o contrário... Não consigo imaginar você, por exemplo, vivendo o que vivi, fazendo o que fiz, ou que deixei de fazer, falando ou deixando de falar o que falei. Você exige das pessoas e da vida o que quer, e não se contenta com pouco. Talvez hoje eu tenha me sentido roubado, que me tomaram algumas coisas preciosas...  E eu sei que, na verdade, eu me deixei roubar. Hoje, depois de ter me encontrado com você, eu tive a desagradável sensação de que fui enganado, iludido, sabotado. Mas eu deixei as coisas correrem por si só, nunca questionei a fundo, nunca encostei a minha ex-mulher, na época a minha mulher, na parede e exigi posicionamento. Achei que tudo que eu tinha era o meu "quinhão", a parte a mim destinada. Que já estava tudo de bom tamanho, a forma como as coisas se arranjaram para mim. Que eu nem deveria querer merecer mais.”

      Ando relendo as trezentas folhas... Eu tinha raiva de você. Muitas vezes precisei que você viesse e se desse um pouco mais. Na época da faculdade, você me olhava de cima. Pela altura que você tem, é a única forma mesmo... mas eu achava que você me desprezava. O seu jeito arredio me incomodava. E eu sentia vergonha porque imaginava que você soubesse de tudo. Era impossível qualquer pessoa saber, mas eu pensava assim.
      Quando você se reaproximou sabendo que eu continuava casada e vivia bem com R, pensei que não haveria problema algum pois não haveríamos de resgatar o passado que sequer vivemos. Foi só aquele beijo, tantos anos atrás. Lembro-me que foi a última carona que você me deu após as aulas. O contato na moto aquele dia foi mais inquietante. Eu estava distraída, pensando na prova que havia feito, quando vi você levantando a perna para subir na moto. Ardi de desejo. Subi calada e mal toquei nas suas costas. Fiquei sem fôlego. Em frente ao meu prédio, você parou a moto, eu desci, você me puxou e me beijou. Era o último dia de aula. Vieram as férias e você sumiu para me dizer um século depois que esperou que eu terminasse com F para que ficássemos juntos. E eu esperei por você todos os dias, pois apesar de F, eu me sentia só, faltando pedaço. E você já tinha as suas mulheres, seu harém e quem era eu para destruí-lo? Foi cômodo continuar com F e fingir que nunca havíamos nos beijado. Depois eu arrumei um carro e acabaram-se as caronas, mas eu teria pulado naquela garupa quantas vezes você quisesse.

3 comentários:

  1. ... e "os mesmos nós" ficam ainda mais complicados quando consideramos os dois sentidos da palavra "nós"!
    GK

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  2. Li seu livro há muitos anos, me lembro de praticamente tudo: do seu desespero quando o problema surgia enquanto estava dirigindo, dos conflitos com a sua mãe, todo o sofrimento, agonia, a busca... mas o que mais me marcou foi quando você fala da moça que apareceu no seu sonho (ou foi de verdade?, não me lembro bem, e não posso checar agora, pois o meu livro está em BH, junto com todas as minhas coisas, em caixas) e disse a você que não era preciso o guarda-chuva pois havia parado de chover.

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  3. Sim, os dois sentidos dos "nós"... A sua frase resume muita coisa para mim.

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