Eu queria lhe entregar flores, hoje que é seu dia, mas não posso sequer me mexer. Uma dor fincada feito agulha grossa me espeta, alucinante. Não deixo que mexam em mim, não aceito fazer xixi na comadre porque meu corpo não pode ser erguido. Se me erguerem, grito. Prefiro me levantar com ajuda da Rosa e bem lentamente descer da cama e ir ao banheiro. Depois o suplício: fico entre a cadeira de rodas e a cama, pendurada parte em uma, parte em outra, porque qualquer movimento dói. Presto atenção no meu respirar. Uma aspirada. Uma parada. E pronto, posso soltar o ar. Esse exercício ajuda a abrandar a dor. Feito, posso me deitar. Deixo meu corpo se encostar como pode na cama e espero vinte, trinta, não sei quantos minutos para voltar ao estado normal que é o sem dor.
Com o tempo olhar as paredes vira hábito e é até bom. Aqui, não tenho problemas. O telefone não toca, nem a campainha com a minha vizinha me pedindo dinheiro emprestado. Aqui, ninguém me pergunta nada. Nada de “o que vai ser para o almoço, hoje?”, “posso ir ao banheiro?” , “a porta emperrou não abre, o chuveiro está pegando fogo”, “o bolo no forno está crescendo e derrama para os lados e o porteiro interfonou perguntou que cheiro de queimado é este”. Aqui, só me perguntam se há dor, se não há. E falam todos os dias que amanhã receberei alta. Eu bem que tentei saber para onde a janela que está atrás de mim se abre, apesar de estar sempre fechada. Rodrigo diz que não importa, que dá nos fundos de um prédio feio, que o dia lá fora está lindo! Todos os dias ele me deixa atualizada quanto ao tempo.
E eu que pensava que uma Unidade de Terapia Intensiva era feito uma capela de tantos silêncios. Pensava num lugar onde se conversasse aos cochichos. Onde os passos eram macios e reinava a quietude das pessoas e coisas. Doce ilusão!... Eu também pensava que havia UTIs para malucos. Não sei de onde tirei essa informação em mim mesma, não me lembro de ter ouvido ou lido nada a respeito, de que doido vai para hospital de doido. Mas não. Os loucos de todo o gênero ficam lado a lado com a gente. Dona Iolanda é a prova disso. E eu não posso rir. Estou proibida, mas a doida não se controla e tão pouco conseguem controlá-la. Meu médico me visita todos os dias e diz que estou terminantemente proibida de rir e falar. Ele diz que cada vez que faço uma coisa ou outra, o sangue que se esparramou pelos meus pulmões caminha mais para dentro, vai cruelmente invadindo o colchão macio deles. E eu nem sabia que tinha pulmões! Eu sabia que tinha apêndice e vesícula e também coração – porque meu coração às vezes dói de tristeza – mas não havia me dado conta dos pulmões. Agora, sei muita coisa sobre eles.
Pois é, dona Iolanda está na sala comprida ao lado da minha suíte. Como eu disse, estou na suíte, dei sorte! Mas a porta fica aberta dia e noite e eu tenho medo dessa doida. Ela tira as cobertas que colocam sobre o seu corpo, na verdade, tira tudo, tenta, inclusive a camisola até que alguém chegue. E ela canta hinos e músicas. Canta alto e bem, é até bom ouvi-la. Mas na maioria das vezes, ela tem que ser amarrada na cama porque ela se exalta muito e o canto fica choroso e os fios não ficam mais presos em seu corpo. Ela arranca tudo e chupa a caixinha preta do dedo indicador, a mesma que eu uso.
Rodrigo me deu dois presentes: um medidor de pressão novinho em folha e um telefone celular proibido. Ele fechou a porta da minha suíte, mostrou-me o aparelho, perguntou o número e esperou a ligação se completar. Ele sabia que eu precisava muito ouvir a voz do meu filho. Ele sabia que meu menino precisava ter certeza de que eu estava viva. De coração, ele correu o risco de ser pego pela médica de plantão, uma onça de brava a médica, e me deu alguns segundos de puro prazer. Ofereci pagar a ligação, mas ele se recusou. Disse que já estava pago, o meu filho estava feliz.
Dona Iolanda me põe medo. Ela já me viu deitada, estou quase de frente para ela, um pouco mais para a esquerda porque tem a parede que divide os quartos. Mas ela me vê e isso me incomoda. Acordo de madrugada com medo de estar sendo esganada por ela. Ela pode achar que sou uma inimiga. Ontem, ela pediu à enfermeira para mandar parar o ônibus porque já tinha chegado no seu ponto. Karine, a enfermeira, perguntou se ela tinha dinheiro para pagar a passagem, ela disse que a colega do lado ia fazer isso.
Hoje, à tarde, o maior rebuliço. Uma agitação só e eu não sabia até então que também já virei estandarte de escola de samba por alguns minutos. Quem chega, chega deitado na maca de rodinhas, é passado para a cama numa tábua e em volta meia-dúzia de enfermeiros a observá-lo. Eu me lembro de ter visto muito branco e muitos olhos, ouvido um falatório... A agitação toda, de hoje, é para o quase-suicida que chegou. Os mais parrudos enfermeiros custaram a dominá-lo; ele deu sopapos em um ou dois. O cara é forte. Grande e gordo, o corpo parece cair pelas bordas da maca. Custaram a transportá-lo para a cama. No fim, ficou amarrado e de fraldas brancas. Coitado, me disseram que é empresário, coitado, se ele se visse... eu via porque fiquei longo tempo com a minha cama na posição sentada. Não para vê-lo apenas, mas para ficar brincando com o controle remoto da cama. Eu desço e subo a cama o dia todo. Faço essas gracinhas porque minhas dores estão bem controladas. Essa minha diversão só perde para a melhor que é olhar as paredes brancas. Bem assentada no meu leito, posso olhar para ele. Não tenho implicância com remédios. Doeu, eu chamo alguém para me dar algum analgésico. De dores, bastam as da vida! O infeliz tem o nome do meu filho e eu acabo sentindo pena dele. Penduraram um saco no corpo dele, que fica caído para o lado, sempre cheio de um líquido preto. Eu me inteiro do assunto: aquilo é carvão que circula pelo corpo dele para lavar, retirar a causa da quase morte: não sei quantos comprimidos para dormir, um punhado, o suficiente para derrubar o grandão. Ele quase morreu, comentaram comigo. Chegou muito mal, demorou a ser socorrido. Três mulheres loiras o visitam sempre e choram muito. Um enfermeiro fica parado diante dele por mais de hora monitorando a maquininha que ele tem igual a minha. A dele está sempre desgovernada. A minha está tão monótona que eles nem se importam mais quando ela desliga sozinha. Eu chamo, chamo, para fazer festa no quarto, mas custa a aparecer alguém. Também pudera, estou aqui há dias.
Disseram-me que dei sorte. Dias de quietude por aqui. Mas eu não pude mais suportar dona Iolanda, minhas madrugadas tranquilas estavam sendo perturbadas pela perturbação dela. Eu, às vezes, acordava com música alta, a danada cantava bem... e eu até gostava. Mas, aproveitei que era dia de plantão da médica onça e dei o berro: eu pagava convênio de saúde caro e não podia aceitar a doida na minha frente. Que a tirassem de perto de mim, porque eu já nem dormia mais por conta dela. Empurraram a cama da doida para o outro canto da sala comprida e ela me perdeu de vista. Dona Iolanda era assim chamada, mas era moça, não era velha. Magra, cabelos na altura dos ombros, loira, até bonita! Toda marcada de roxos, e ninguém sabia direito se era autoflagelação ou surra mesmo. Ela vinha de uma casa de descanso. Deram agora para chamar o lugar de casa de descanso!
O que mais me doía era a mãe que teve um bebê e ficou com o peito cheio de pedras. Eu também não sabia que isso era caso de terapia intensiva, mas o Cláudio, enfermeiro, disse que o hospital era uma maternidade. Então, por que não levar aquela paciente para lá? O bebê passava bem na incubadora, mas a mãe pedia aos gritos que parassem... Todo dia, várias vezes ao dia. Eu me endurecia na cama. Ficava que nem pedra. Parecia som de gente torturada. As enfermeiras espremiam os seios dela para desmanchar as pedras. E ela urrava. E eu também, em silêncio. Vivi aquela tortura por muitos dias, até que um dia, ela veio tomar banho no meu banheiro. Toda sorridente, sentada na cadeira de rodas, com uma bolsinha contendo xampu, sabonete, escova... preocupada em prender os cabelos. Saiu do banheiro melhor que entrou. As mães são assim: possuem uma capacidade de esquecer dor que não dá para entender.
A minha dor diminuiu, mas ainda incomoda muito. Passo o dia tossindo e tomando água. Eu nada mais sei do mundo lá fora. E nem quero saber. Penso nos meus filhos e só. Sei que estão bem e relaxo. Minha cunhada falou que são minhas férias, nada para fazer, preocupar, posso dormir o dia todo. Eu queria mesmo é poder dormir de lado ou de barriga para baixo, mas a dor não permite. Eu estava no refresco da morte. Saí de casa à noite, com o corpo dobrado em dois, sentindo dor ao falar e ao respirar e sem saber que doendo não se respira e se não se respira, morre-se. Mas como eu disse eu estava no refresco da morte. Ela só fez gracinha, borrifou-se em mim, igual no colégio do meu filho, na época de calor. Um arzinho de água, pouca coisa, nada que molhe o suficiente. As tranqueiras da vida passaram perto, mas houve um lugar por onde passou oxigênio. E eu pude levantar a cabeça e sentir o refresco. Só quem conhece a morte, sabe o que é o refresco dela.
Penso em você. Hoje é seu dia e eu não posso lhe entregar minhas oferendas. Flores, beijos... Hoje, talvez, eu lhe entregasse minhas lágrimas e a honra de ter passado pelo corredor escuro, mas resistido bravamente. Eu aprendi a ser uma pessoa resistente. Descobri que ser forte não é um dom, é uma conquista.
Por Suzana Guimarães