domingo, 20 de janeiro de 2013

20 de janeiro de 2013, 4 anos, eu sou Mrs. Guimarães.

Mrs.Guimarães, by  Suzana Costa Guimarães




Mrs. R., uma das minhas professoras de Inglês, confirmou o que eu havia lido num dos livros que estudávamos: um professor deve ser chamado pelo aluno de Mr., Mrs. ou Ms. acrescido do último sobrenome. Espantada e envergonhada, eu disse que sempre chamei os professores de 'professor'. Ela disse que todos aceitam, pois é costume em vários países, mas não é polido na América. O mesmo ocorrendo em consultórios médicos, departamentos públicos, enfim, em qualquer situação formal ou pelo menos não íntima (difícil é pronunciar certos sobrenomes).

Se a mulher é solteira, ela é chamada de Miss; se é casada, de Mrs. Na dúvida sobre o estado civil dela, Ms. Os homens casados, Mr. ou 'Sir', em qualquer caso. Pois bem, sou Mrs. Guimarães, sobrenome do meu pai, desde sempre, e estou casada. 

Após mudanças bruscas e radicais na vida, tudo é chacoalhado, e, possivelmente, o que você queria que mudasse, muda, mas também altera o que você pensava inalterável. Não há manual de instrução ou receita infalível, mas é o que geralmente ocorre. 

Mrs. R. lecionou 'Idioms'. Tínhamos dois livros: um, sobre etiqueta, hábitos, boas e más maneiras, gestos, valores, e, outro sobre as expressões mais usadas no país, como por exemplo, para felicitar, dar pêsames, gírias, provérbios, e inclusive como se faz para ter o melhor 'dating' de sua vida. Ela falava sobre a vida americana, em seus mínimos detalhes do cotidiano, falava sobre ela, sobre a sua família e nos instigava a falar sobre a nossa vida em nosso país. Os hispânicos gostavam de formar grupos entre eles, e, eram constantemente interrompidos por ela, que pedia a eles que a conversa fosse em Inglês, claro! O meu grupo era o mais interessante: Brasil, China, Camboja e Egito, de vez em quando aparecia outro latino, ou ela, a professora, mudava todos de lugar. Ríamos de chorar com as histórias, tanto as dela, quanto as nossas, mas o respeito era uma constante, respeito pelos costumes do país de origem do colega.

Aprendi que eu devo sorrir para todos que sorriam para mim, na rua, nas escolas, nos supermercados. Eles esperam que você sorria de volta. Eles estão lhe dando boas-vindas, pois sabem que você é estrangeiro. Falo de uma maioria americana, mas a minha cidade é um mosaico de gente, de gostos e de liberdade, então, chega uma hora que você não sabe mais a nacionalidade de ninguém. Eu disse a ela que a 'crossing guard' enlouquecia-me. Quatro pistas duplas de rolamento para eu escolher passar a pé, e ela, em guarda, ergue a placa de PARE, apita e vai acompanhando-me. Enquanto caminhamos lado a lado, repetimos duas, três, cinco vezes as frases, 'have a nice day', 'thank you', 'you`re welcome', 'happy Friday', 'I`ll see you', 'bye bye'. Mrs. R. riu, disse que era assim mesmo. Argumentei que talvez seria uma certa timidez numa enorme vontade de comunicação e entrosamento.

Em quatro anos, já posso dizer das minhas certezas: os motoristas não sabem contornar uma rotatória, atrapalham-se nas pistas. Ninguém pega o que vê largado em algum canto. Os homens são realmente muito tímidos. As pessoas não esperam que você responda nada mais além de 'Hello' ou 'How are you?', após lhe cumprimentarem. Elas não querem que você diga como realmente está. Elas não conseguem sustentar uma conversa por cinco minutos com um estranho. O ideal é a distância de doze pés entre você e o teu interlocutor, em zona pública; doze a quatro pés, em zona social; um e meio a quatro pés em zona mais pessoal, e, por fim, dezesseis polegadas ou menos, na intimidade. Os californianos detestam que você fique muito perto deles numa fila e não pense em furá-la. Em New York, eles não respeitam filas... Pizza e bifes de carne podem ser comidos com as mãos. 

Já não me importo em colocar eu mesma a gasolina no meu carro. Não me acostumo com a falta de ralos nos banheiros e na cozinha. Só vi duas casas com tanque. Eles não fazem a bainha das calças. Em todas as festas, são servidos legumes crus e frutas em bandejas com divisórias e todo mundo come, crianças e adultos. Por aqui, dia de festa tem arroz, feijão e frango com osso. Eles realmente adoram pratos, copos e talheres de plástico (eu odeio isso!). Tente retirar certos comprimidos presos em cartelas metálicas sem usar uma tesoura, tente. Eles bebem cerveja direto no bico. Eles gostam mesmo de café frio! Muitos não se importam em andar de pijama pelas ruas. Tente tirar uma boneca de dentro da caixa... após você retirar uns sete araminhos e umas sete gominhas, ela ainda estará presa pelas pernas, braços ou pescoço. Quando uma sirene toca, no trânsito, todo mundo para imediatamente, inclusive os carros que estão do outro lado da pista. Pedestre tem prioridade e ponto final. Eles abrem os presentes no final das festas, anotam o que receberam e de quem foi para enviarem, mais tarde, um lindo cartão de agradecimento. Minha colega, na faculdade, disse que isso é coisa de americano, coisa de rico.

Eles apreciam as minhas roupas e brilham os olhos quando digo que comprei no Brasil. Eles dizem que a Língua Portuguesa é mais linda que a Espanhola, a Francesa e todas as outras. Dizem que o som é lotado de 'ssss'. Eles cantam trechos de músicas brasileiras para mim, eles querem conhecer o Brasil. 

Continuo não fazendo questão de entender tudo o que me dizem. Ficou claro, nesses anos, que quem quer se comunicar comigo, dá um jeito. Peço desculpas pelo Inglês ruim e faço ar blasé. Tornei-me solitária, por opção. Ao sair da zona de conforto em que eu vivia, percebi a minha eterna permissividade (que apenas abrandei após meu encontro com Dr. J.). Ao me retirar do meu velho mundo, me vi sozinha, fazendo tudo sozinha e descobrindo que, respirando devagar, pensando 'só hoje, só hoje', eu posso fazer o que precisa ser feito e eu posso também suportar a crueza da noção de que pouco todos podem fazer por nós; o que mais vejo são pedidos e cobranças. Forcei felicidade, amor e amizades enquanto vivia no Brasil. Eu sempre tive muito medo, de tudo, de andar nas ruas, de assaltos, da violência em geral. Não vivo no paraíso, as penitenciárias também existem e até pena de morte, mas eu me sinto mais segura aqui. Eles falam menos, eles conseguem se manter parados por longo tempo, eles possuem mais auto-controle.

Eu quis mudar e mudei. Porém, o processo é sempre muito mais complicado do que se espera. Hoje, estou só. Se eu ficar com preguiça, o cesto de roupa suja transborda, as lixeiras não são esvaziadas e a pia da cozinha transforma-se numa enorme torre de copos, pratos e panelas. Não posso ficar doente, senão meus filhos não vão à escola. Meu marido virou meu amigo e meus velhos amigos, inimigos, pois, vi na maioria deles o mal da inveja, e, então, não são meus amigos. A inveja não tem idioma, e eu posso perceber que Mrs. Guimarães incomoda por aqui, também. Parei de me preocupar por não ter muito tempo para todos, ao perceber que está todo mundo muito atento à sua própria agenda e conforto. Escrever, ah, escrever, algo que se firmou aqui na América, é, dos meus atos de resistência, o número um. Ando quieta, por prazer e resguardo. Escondo no banheiro do meu quarto, escondo no sofá da sala, passei a sofrer de intolerância auditiva, parei de pedir um espaço, agora, eu empurro, e sou feliz. Da mesma forma que não preciso dar ouvido a muito do que me dizem em Inglês, também não preciso em Português.


Há quatro anos, eu chegava na América bem na hora da posse do Presidente Obama. Hoje, ele novamente está no poder e eu inicio um texto: sou Mrs. Guimarães, meu nome é o do meu pai. Estou casada, tenho dois filhos, vivo um dia de cada vez. Pouco sei do amanhã, talvez eu alcance os jardins da Babilônia, talvez, não. Esse jardim está em qualquer lugar para ser encontrado, e parece não haver traço marcado no mapa.


Por Suzana Guimarães