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fotografia, por SCG |
Dois anos na América e isso não é exílio, é vida nova, mas é muito nova e eu muito velha, cheia de histórias. É vida nova, então, vida sem passado, sem rostos que um dia conheci e tentaria lembrar-me de onde, sem ex-qualquer coisa. Sem esquina, sem bar, sem bairro onde fiz amor ou desamor, onde vaguei perdida ou totalmente encontrada, sem álbum de fotografia.
Dois anos na América e isso não é exílio, é vida nova, então é quase feito nascer de novo, fica-se sem o passado, ganha-se autonomia. E a marca do sabão em pó que você usa não importa nem um pouco.
Aconteceu há pouco tempo, quatro ou cinco meses atrás. Uma amiga veio à minha casa, trouxe outra que vendia produtos de uma marca famosa americana. O de sempre, você faz o pedido via telefone ou computador e eles entregam na tua casa. A moça iniciou a conversa dizendo que talvez eu não quisesse mudar a marca do sabão que eu usava para lavar roupas...
Estou muito feliz hoje, faço aniversário, dois anos de terra nova, vida nova, mesmo que num corpo nem assim tão novo mais. Se fosse só a Língua para vivenciar seria fácil. Se fossem apenas outros endereços, outros números e rostos para se acostumar, seria fácil. O problema foi achar um coador de plástico pequeno no supermercado; encontrar uma panela de pressão e explicar para o meu amigo para o que ela serve e como funciona; saber de qual parte do bicho é aquela carne; qual absorvente usar, pois todos são "mini" ou para casos de hemorragia. Difícil foi saber se aquilo era uma loja, uma residência ou um escritório, difícil entender se era mercado ou farmácia. E eu não sei por que as pessoas abreviam as palavras, e eu demorei a aceitar que é certo mesmo avançar o sinal vermelho à direita, e a achar menos estranho ficar parada no meio do cruzamento de duas avenidas, esperando um momento para convergir à esquerda, eu até hoje penso que estou fazendo algo errado e às vezes sinto a colisão que não ocorre.
Dois anos e isso é ótimo. Aprendi a comprar absorventes, mas os internos ainda são um problema, aprendi a falar embolado e o melhor, aprendi que muito do que a gente fala, não presta para nada. Não entender metade da conversa não tem muita importância. Custei a entender os tamanhos das roupas de cama e a conseguir dizer o que quero para as atendentes das lojas sem ter que falar uma frase enorme, explicando que quero o lençol que fica em cima do colchão, as fronhas, o outro lençol para cobrir...
Outro dia, esperando a minha aula de jiu jitsu começar, dei de cara com uma moça alta, olhos verdes, puxados. Nós nos olhamos e eu senti que a conhecia, coloquei os olhos nela e os tirei várias vezes para me lembrar de onde. Creio que ela sentia o mesmo. Lembrar de onde? Dois anos não é tempo suficiente para se criar limo. Fiquei com a curiosidade até descobrir que ela havia treinado lá, umas poucas vezes, assim que cheguei pela primeira vez, um ano atrás, levando meu filho pela mão.
Aqui não há casa de vó ou de tio para deixar as crianças e fugir para um cinema ou um jantar. Guaraná custa caro, e coxinha de galinha, você faz em casa, aprende. Aqui, aprende-se tudo: pôr gasolina no carro, fazer bainha na calça, depilação (só as contorcionistas conseguem) e saber cozinhar é coisa de rei. Eu ia ter que aprender a fazer minhas sobrancelhas, mas antes que eu perdesse as duas, encontrei uma indiana que usa linha de costurar e cobra barato. Dói mais que pinça, mas fica lindo o resultado final. Só que, se você se distrair um pouco, ela passa a linha em todo o teu rosto...
Os homens são acanhados, não há a mínima possibilidade de eu ouvir um fiu fiu vindo de uma construção. E pensar que eu odiava isso! As mulheres são belas aqui na costa californiana, loiras, orientais, coloridas, resolvidas, pouco delicadas com portas, ou melhor, todos muito pouco delicados com portas. A maioria anda pelas ruas ou dirige seus carros carregando um copo enorme de café. Já experimentei, é frio.
Vivo uma experiência nova, sei que há saudades, muitas, e há um quê de belo naquelas ruas de calçadas estreitas, nas chuvas tropicais, no jeito de ser que jamais perderei. Sou aqui distinguida como brasileira igual às outras conterrâneas, pela bunda. Bom, para dizer a verdade, pensam primeiro que sou francesa, depois italiana, e quando, por fim, digo que sou do Brasil, vejo brilhantes olhos à minha frente, curiosos... em minha experiência, percebi, mulher brasileira aqui é lenda.
Não há passado, por isso, é comum o sentimento de exílio. Não há álbum, não há colega de infância, mas há certezas, muitas que não tive fora daqui. Há menos medo, apesar da constante ameaça de terremotos. E, após dois anos, tentando e aprendendo a lidar com os mapas geográficos, humanos e também aqueles de conduta que ninguém ensina e você vai pulando os deslizes por não ter nascido em tal núcleo, após, você percebe que pouco importa a marca do sabão em pó que você usava, usa ou passará, amanhã, a usar.
Por Suzana Guimarães