fotografia, por SCG |
Eu quero ser o cara que era no meu sonho
Quero estar no teu sonho também...
Ser o primeiro, o segundo, o terceiro.
Ser cama, ser prazer.
O orgasmo fingido e o verdadeiro
Ser super-herói
Talvez só super
Talvez só herói
Ou nenhum dos dois
Num país distante ser estrangeiro
Ser a incoerência dos teus pensamentos
Eu quero ser o vento
Ser a música dos Beatles
E o gaúcho da fronteira
Eu quero ser o cara que eu era no meu sonho
Quero estar no teu sonho também
Ser o artilheiro do campeonato
Distintivo no peito, bola na rede
O grito de gol
Ser os segundos que antecedem um beijo
Ser o próprio beijo
eu quero ser Deus, mesmo quando todos forem ateus
eu quero ser ninja, e quebrar tua cara
ser macaco gordo, e quebrar teu galho
ser a chuva em tempos de seca
um suspiro, o marcha lenta
ser três pratos de trigo
para três tigres tristes
eu quero ser as palavras vagas que saírem da tua boca
ou um poema do Mário Quintana
eu quero ser o cara que eu era no meu sonho
quero estar no teu sonho também
eu quero o amor da princesa
corpo de mulher, olhar de tristeza
e dela ser o príncipe ou talvez o sapo
ser charme, ser don Juan de Marco
ser trigo em época de colheita
ser cachorro, ser um gato
arrepio de quando teus pés descalços tocam areia da praia
ou de quando minha língua percorre teu corpo
ser cachaça nos botecos do mundo
ser Romeu ou uma Julieta lésbica
samba nos pés da mulata
um tango em Buenos Aires
eu quero uma estátua com meu rosto
por tudo o que eu ainda não fiz
ser o trem, o trilho, maquinista,
passageiro que se apaixona pela menina de cílios longos
ser o texto que nasce então em mim,
ser a tua incompreensão
um bordão tantas vezes repetido
tão gasto quanto meu tênis velho
ser o gol de placa
ser o pulo, ser o soco no ar
Eu quero ser Pelé.
Eu quero ser o cara que eu era em meus sonhos
Quero estar nos teus sonhos também
Ser os Deuses de Raquel
As mãos do médico que traz a vida
E as do coveiro encerrando o ciclo
O voto nulo, ser capa de jornal
Eu queria ser muito mais destino
Muito menos distância
Escapar por entre teus dedos em meio a noites errantes
E fazer de mim teu lar
Ser milagreiro, benzedeiro, batuqueiro, pagodeiro,
ser o bilhete premiado
Ser o amém em todas as orações
a noite em claro
o cochilo no ônibus
o Dinhoinho dando risada, o velho jogando dominó
o frio na beira do Guaíba
o Beira Rio em dia de grenal
ser Figueiroa e cabecear naquela fresta de sol
eu quero ser o cara que eu era no meu sonho
eu quero estar no teu sonho também
tuas mãos lavando teu corpo no banho
um delírio, um pedido de perdão
ser vírgula num texto que ainda nem foi escrito
ser o revólver com o qual Hitler se matou
ser tudo o que eu não posso
os sorrisos das ninfas
o caminho pras Índias
um desequilíbrio, um soluço, um copo a mais na tua sóbria embriaguez
os rastas do Bob
cantando por liberdade e um pouco mais de paz
ser Nero pra colocar fogo em Roma
ser dedos pra acender o teu,
passos calados de becos escuros
ser gritos, sussurros
lembranças de alguém que quer esquecer
ser a luz do fim do túnel
ser a luz de uma vela
num jantar romântico, num batuque de uma encruzilhada
um filme de terror, um conto de fadas
ser Peter Pan e virar criança pra sempre na Terra do Nunca
eu quero ser o cara que era nos meus sonhos
eu quero estar nos teus sonhos também
ser o leve movimento das asas de uma borboleta
ser um furacão destruindo tua cidade
o brilho de um olhar
um político honesto, um milagre
um abraço, um adeus
ser a mosca da sopa, a massa da sopa, o caldo da sopa
ser um prato de sopa também
mas prefiro ser esta metamorfose ambulante
ser Raul Seixas
ser o lenço vermelho, guerreiro maragato
ser Sepé Tiaraju, índio flor de guapo
a história contada, a história vivida
o mais valente
ser um certo capitão Rodrigo
ser os continentes do Érico Veríssimo
eu quero ser o cara que eu era no meu sonho
quero estar no teu sonho também
quero ser o formato daquela nuvem
fogueira de São João
ser aquele amante à moda antiga, do tipo que ainda manda flores
ser Roberto Carlos, ser tantas emoções
uma estrela cadente, uma estrela do rock
ser livro empoeirado na prateleira
ser meio, ser fim,
ser véspera de feriado
olhar que fala calado, esquinas de ruas que eu nunca andei
veleiros perdidos por mares distantes
guerreiros antigos, soldado, ser rei
ser um mendigo, ser um pivete, ser Jesus Cristo
teu último pensamento antes de dormir
aquele que lentamente se transforma em sonho
por que eu quero ser teu sonho também...
Um texto de Rafa Feck.