domingo, 5 de janeiro de 2014
UMA CARTA PARA AÇORES
Long Beach, 4 de janeiro de 2014.
Querida L.,
Escrevo-lhe para encurtar meus dias que parecem muito longos, uma claridade constante a invadir-me, os sons de um dia eterno, o entardecer que não me alcança...
Assim, neste ato de me virar para você, aí, tão longe, do outro lado de mim, escondida em terras de Portugal, onde o Atlântico parece-me mais convidativo....sei, eu sei, é gelado também, mas o nome soa meu, é minha casa materna, o fundo daquele reino que ficou para sempre, o quintal de todas as fantasias que vi passar por entre minhas pernas finas e meus braços desengonçados. Assim, nesse ato de me virar para você, eu entardeço e anoiteço, fecho-me em portas dobradiças, janelas de onde só se passa luz fina, mínimas frestas... e eu descanso.
Ouço 'Arrival of the birds', penso em você que dorme, não irei assustá-la, posso caminhar sem sons, sou desprovida deles, tenho até um péssimo hábito, o de suspender a minha respiração a todo momento. Seu quarto cheira a mirra, você gosta de cobertas claras, dobradas aos pés da cama e seus gurus cochicham enquanto lhe velam na chama que arde, amarela, hoje, amanhã, rosa... em um rosário sem fim de pedidos e ladainhas.
No cômodo ao lado, sinto cheiro de hortelã, e sei que lá fora há rochedos e silêncio; ruas estreitas que ora se cruzam para depois se estenderem até onde não mais alcança a vista.
Há um varal de roupas brancas, posso vê-lo, posso tocar os lençóis, as longas vestes e suas capas, posso contar para você a história de um guerreiro que pedia à mais bela das moças da vila para lhe besuntar com óleos sagrados, pois ele acreditava nos poderes dela e no poder de um corpo forte e escorregadio, cujos olhos pintados de negro afastavam espíritos malignos imbuídos de fazê-lo perder a batalha.
Posso lhe dizer como esses dedos brancos e finos o tocavam. E posso lhe garantir que ela desenhava nas costas desse guerreiro um mapa. Sempre o mesmo. Incontáveis vezes, tantas, que até hoje pode ser relembrado e desejado, o caminho da volta.
Esqueci de lhe dizer, eu sou a moça dos sonhos, aquela que os vendia por alimentos e você os comprava. E hoje retorno para ratificar um por um, sem ônus, por agora, um único, para você e para ele, meus sonhos tornaram-se de graça porque a fome do mundo não me ganhou, eu sobrevivi a ela, e jurei juntar as mãos que perdi num tempo que ninguém dele se recorda... só eu. Meu único pedido é que vocês sejam mais resistentes que o tempo que nos come.
Eu vim aqui para lhe dizer, principalmente, que meu nome é Recordação e não aquele com o qual me alcunham. E, depois que eu partir, assim que eu dobrar a esquina do seu jardim em labirinto, você se lembrará de um nome, do nome dele. E do seu, que você esqueceu.
A música cessa e junto com ela os sons da casa, todos eles, imbuídos de um poder maior, ancestral, o mesmo que sibilava ao passar pelas roupas expostas nos varais e fazia a gente acreditar que ali iniciava e morria toda a criação.
Mas, não, a criação é obra oculta, de criador que não vende sonhos, apenas tampa-os para que nós, somente nós possamos os desvendar.
Nesses dias intensivamente claros, apresso-me, já que a hora se faz. Há uma morada sem sua dona, eu; há pequenas velas, redondas, acesas, apesar de toda a claridade... preciso recolher-me neste inverno que começou faz tempo. Faz-me falta o interior, o sombrio e o estar completamente só.
Desmontei a árvore de Natal com suas luzinhas, errei a tradicional data, tamanha é a pressa. Comprei tinta nova para os cabelos e um perfume diferente para neutralizar os do passado recente. Ouço outras músicas, enquanto ajeito minha casa para meu retiro, quero, a partir de agora, aprender a gostar do barulho que os ponteiros de um relógio fazem, aquele mínimo que eu tanto detestava, mas que traduz realmente minha vida germinando.
Aguardo suas novas, aguardo seu acordar.
Beijo,
Suzana
Por Suzana Guimarães