segunda-feira, 4 de junho de 2012

LEMBRAR É POUCO

(Suzana Guimarães - arquivo pessoal)


Eu me lembro de você. Não fique triste por isso e muito menos feliz. Apenas me recordo, da mesma maneira que me lembro da Iolanda, conhecida da minha mãe, uma mulher infeliz com o marido, ele batia nela e eles tinham um filho. O quarto do menino era delicadamente decorado, ela era dedicada. Eu tinha 12 anos ou menos, ouvia as palavras da minha mãe para ela, palavras inúteis pois Iolanda não se defendia, não lutava, não ouvia ninguém, até que um dia já não pôde fazer mais nada, mesmo que quisesse, morreu.

Eu me lembro de você, assim como me lembro da Telma, já grande, no colégio, fazendo xixi na calça, parada, com o rosto vermelho, envergonhada, assistida pelas freiras e pelo pai que chegava às pressas para buscá-la. Eu me lembro da cena.

Lembro-me de outra menina, é claro, trocarei todos os nomes, a essa darei o nome de Bela, lembro-me de seu cabelo ruivo, das sardas, lembrei-me dela por anos, sem qualquer motivo, ou talvez, o único, o irmão dela parecia ter problemas para andar. Aquilo incomodava a menina observadora que eu era. Bela se viciou em drogas. Está num hospício há mais de 15 anos, pois, aos vinte e poucos tentou matar o irmão.

Eu tinha uma fileira de meninas para lembrar por lembrar, pois, sequer chegaram a ser minhas amigas. A cidade era muito pequena, o colégio e o nosso mundo. Fiquei sabendo que Alexandra morreu aos 32 anos de infarte e a Lidiane, aos 30, também, pela mesma razão. Leontina misturou insulina com droga e deixou a vida aos 17. A menina popular, que cantava numa banda, foi internada como louca num sanatório, porque se envolveu com drogas e se assumiu homossexual. Após um tempo, a família permitiu que ela voltasse para casa, agora, sim, louca, de tanto choque que levou. Quase tive uma crise histérica ao telefone, ouvindo a preleção de Mariana (que encontrei no Orkut), fiquei abismada com o rosário de desgraças. Lembrei-me dos retratos 3x4 guardados em minhas caixas, com dedicatórias, recebidos das colegas. Sim, meninas, apenas meninas naquele colégio.

Lembro-me de você, sem muito alarde, sem muita graça ou desgraça, mas lembro.

Quando penso na precariedade da vida, penso na minha, e, aliviada, agradeço a mim mesma, por tudo que fiz e vivi. Tudo pouco, nunca fui de me lambuzar até o enjoo, mas tudo pleno. Evitei as loucuras e a ignorância, porque eu me lembro também do meu pai dizendo que ele só tinha medo de dois tipos de pessoas: dos loucos e dos ignorantes. E ele estava certo.

A ti, ofertei o melhor de mim, sei que, junto, foram coisinhas que você talvez não tenha gostado, mas que tenho certeza, hoje, fazem falta em teu mundo. Eu alegrei os teus dias com meu riso, bom humor e uma certa falta de horário; com meu amor escancarado, meus conselhos, minha atenção, minha presença certa - você sempre soube que haveria um retorno, uma resposta, uma volta.

Hoje, estou calada e assim permanecerei. Não sou de loucuras, repito, e qualquer passo ou ato seria me lançar na vertigem do desassossego. Sou de doideiras mansas, aquelas que não fazem mal a mim e a ninguém, só mostram que a vida pode ser bem mais interessante.

Sou teu desejo de voo, sou decisão. Sei viver bem dentro do não e do sim. 'Talvez', 'acho' e 'não sei' me irritam. Nunca lancei moedas na fonte dos desejos. Não construí castelos. O pouco que idealizei para mim, não aconteceu, mas, ganhei muito tudo o que nem imaginei, e, cedo, percebi que o segredo era castrar a vontade.

Lembro-me de você e percebo que eu perdia naquele jogo o tempo todo - um jogo que eu nem sabia estar jogando - como nem sabia estar observando a Iolanda, a Telma e tantos outros. Sou crua nos sentimentos, vejo-os como se apresentam para mim. O tempero e o cozer sempre caberão ao outro. Faltou a você, o sal, a pimenta, a mostarda. Faltou a você, mãos decididas, sou mulher, e você só sabia pensar, grande erro. Mulheres esperam ação dos homens, biologicamente já é assim. Ah, isso me lembra as aulas de Direito Penal e o professor dizendo ser impossível um homem ser estuprado, poderíamos falar em várias outras condutas abusivas e delituosas, mas nunca em estupro. Ele dizia, "se ele não quiser, o órgão sexual não funciona, gente, não funciona mesmo!". É, lembro-me sempre dessa época boa da minha vida, incomparável a qualquer outro momento como estudante, mas não sofro, assim como não sofro por você e por todos os homens sem mãos que conheci e que desconhecem o valor de um tempero.

Lembro-me de tudo, da roupa da minha primeira comunhão, do nome que ninguém se lembra, da palavra presa na ponta da língua e que não sai, de tuas palavras e de você. Nada me angustia porque conjuguei todos os verbos e cantei a tabuada inteira, não errei o discurso de saída e muito menos as boas-vindas.

Mas, lembrar é pouco, a mim, não basta, é o mesmo que ir ao cinema, basta na hora e um tempo depois; mais tarde, vira uma contação de caso, igual a essa.

por Suzana Guimarães