fotografia, por SCG |
segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011
UMA CARTA PARA TI, EM TEU CÉU
Jeovanny,
A tinhosa anda me espiando, sem hora, sem trégua. Eu não sei o que essa senhora velha quer comigo, por que gosta tanto de rondar-me. Passou por mim, ontem, hoje, carregando nas mãos gélidas (ou seriam ardentes?), fotografias.
Ela as enconde de mim, não sei de quem são, mas ela faz troça comigo e eu não gosto. Ela usa meus amigos, uma folha rasgada no chão, um anúncio no jornal, um passante que me conta sobre ela. A morte, Jeovanny, anda fazendo troça comigo.
Ela correu atrás de mim, moço. Um ano após, ela o pegou. Ela o pegou quando aqui cheguei. Lembro-me do dia em que a minha mãe avisou-me. A voz dela veio cambaleante, hesitante, distâncias comem o conhecimento, aquele mais importante, "será que você está aí presente, já que não vejo o brilho dos teus olhos?". Ela disse: "Jeovanny morreu de Trombo Embolia Pulmonar, você sabe, ele não fumava, não tinha vida sedentária, não estava acima do peso, não tinha pressão alta, mas ele fez uma cirurgia boba, simples, trivial."
Jeovanny, recebi o aviso da tua morte duas vezes, dois tapas fortes, lascados, frios, duros, com dedos estalantes... aquela senhora velha havia lhe pegado. Um ano antes, ela veio da mesma forma para mim, mas se esqueceu do relógio, o meu, aquele que Deus a mim conferiu. Com você, ela veio rápida, rasteira, impiedosa... eu a odeio, Jeovanny, a odeio tanto, eu queria cruzar meus braços por sobre aquele pescoço sem fundo, fazê-la beijar o chão, dar tial para ela, fazê-la esfregar a cara no pó, até ela jurar me deixar em paz, pelo menos, isso, deixar-me em paz, em meu sossego. Mas quem sou eu? Apenas alguém que já sonhou com ela, toda ordinária, mas envolta em lenços multicolores, esvoaçantes, hipnotizantes e quase fatais de tão sedutores. Eu sonhei... Não sonho mais, hoje prefiro o desejo constante de desprezá-la.
Eu tive tanto tempo... Você nenhum. A desorientada daquela senhora (às vezes, ela se perturba) fez com que eu ganhasse doze horas, a ti nenhum minuto a mais para alcançar o leito do hospital de onde você havia acabado de sair.
Ela anda pisando leve, bem próximo a mim, mas eu prefiro lembrar-me de ti, que ela enlaçou injustamente, mas que não conseguiu queimar tuas obras. E aí, Jeovanny? Onde estão teus tubos de tinta? Creio que você espreme flores, folhas, terra molhada entre os dedos e colore teus sonhos, da mesma forma que você aqui fazia. Tuas romãs, maçãs, tuas inesquecíveis colchas de retalhos. Sabe, penso que você sabe, a minha mãe, quando vê a manta enfeitando em moldura a parede da sala, agasalha-se na lembrança que tem de ti. R. lembra-se de você enquanto lava a louça, enche os olhos de lágrimas e eu me lembro daquela sala, minha, perdida, guardada, fechada, respirando por frestas, onde abriga três de tuas obras.
Um dia, irei lá, eu sei, e chorarei aquele mundo, será dolorido, cortará como gilete, fino, agudo, um rasgo parecendo sem fim, eu sei, irei lá, dar destino para aquilo tudo, dar desfecho, e, alcançarei tuas telas, empilhadas, esquecidas... e você morrerá pela terceira vez.
Mas, depois comerei as romãs, pois só você para dar hiper-realismo à coisas sem vida, uma fotografia, uma faca, um vaso de flores sobreviventes em água, ou mesmo nos fazer sonhar, um Drummond passeando por Itabira. Aquela calvície dele, inconfundível, terno escuro... Só você para ensinar-me que o mundo não é tão impressionista, tão escuro, tão sombra, tão claridade, tão luz.
Saudades, Jeovanny, saudades... Eu não me despedi de você, imagino o susto que levou quando viu, aí do céu, R. perambulando por ruas desconhecidas, gélidas, escuro em panos, perdido em caminhos tortuosos, procurando alcançar propósitos, tocar com um dedo que fosse uma boa oportunidade, assim como você fez por toda a tua vida. Tua garra, Jeovanny, teus sonhos, tuas "vernissages", teus casacos de frio, tua presença em minha grande festa, teu sobrinho, tua irmã, teu ateliê. Teus amigos. Nossos sonhos estilhaçados, nossas promessas não pagas, nosso desasossego, nosso primeiro encontro... vinho, queijo e telas. Uma festa, duas, três. Tuas aulas. Tuas vendas... tão acanhadas... você e aquela dificuldade para falar em preço. Teu segredo, tua doação, teu óculos na ponta do nariz! Um encontro marcado, de tão amado, revisto, repetido. E eu não lhe disse adeus.
Nem direi. Fica aqui meu até breve, meu desdém àquela velha senhora. Fica aqui, um daqueles nossos abraços apertados, bem dados, tua voz calma, tua fala em forma de sorriso, teu jeito meio envergonhado. Fica aqui, meu último beijo, na testa.
Suzana Guimarães
24 comentários:
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Do seu até breve, fica aqui o meu abraço ao ler uma carta emocionada escrita com saudades...
ResponderExcluirBeijos Su
Um dos mais belo texto seu, Suzana. Falar da ausência, da saudade é muito difícil e vc o fez com maestria.
ResponderExcluirFica com meu beijooO* cheio de carinho.
Querida amiga Suzana,
ResponderExcluirNão sei se já te disse - se já, digo novamente -, mas acho incrível o jeito como escreve, com palavras transbordando de emoção.
Você é das poucas pessoas que conseguem me emocionar com um texto, que me vejo automaticamente dentro da história, me colocando num lugar, pondo pessoas amadas em outro...
É um prazer imenso lê-la e um grande orgulho receber o convite para estar aqui.
Obrigado pelas duas coisas! :)
Grande beijo!
Su,
ResponderExcluirMeu anjo essa leveza nas palavras, te cobrem de lenço alvo e transparente.
Gosto muito dessa tua maneira de fluir.
Quando leio assim algo que me toca fundo as meninas dos olhos imagino o caminhar das coisas, da vida.
Então é isso moça!
O ombro é adolescente, mas o coração é abarrotado de carinho.
Mando um beijo meu pela brisa, tomara que chegue aí do outro lado do oceano.
Um beijo.
Fernanda
Suzy: Tua Carta me fez chorar e me trás a lembrança lindas e ternas recordações de umas pessoas que eu perdi é juma forma de falar deixaram-me neste mundo e partiram para junto de Deus pai, tenho 4 cartas escritas que não tenho coragem de postar no meu blog, uma drigida a minha mãezinha e outra ao meu pai outra aos meus sogros e outra a um amigo que eu perdi. Devias gostar muito de Jeovanny.
ResponderExcluirBeijos
Santa Cruz
Mais uma vez: perfeito!!!
ResponderExcluirNão te cansa surpreender sempre??
A carta é realmente uma aceitação linda e madura de uma saudade eterna!
Saudades, despedidas têm me doído sobremaneira neste momento.
ResponderExcluirMas suas palavras têm um ritmo que afaga, que embala a alma, que fala de sonhos, de coisas vividas...
Estava precisando ler estas suas profundidades.
Beijo, querida!
Suzana,
ResponderExcluirFiquei me lembrando de cartas que escrevi a pessoas que eu perdi.
Perdi pra quem?
Pra uma outra dimensão, esfera, vibração, lar, plano, sei lá...
E essas cartas, joguei-as ao mar (Tenho mania disso).
Mas sei que de todas as dores (minhas dores superáveis - porque as supero), talvez essa dor seja a única que me dói mais.
É um sangue que eu não consigo estancar.
Incrivel sua capacidade de me emocionar.
Um beijo!
Eu escrevi para ele, não para me fazer sofrer, ou fazer a minha mãe ou mesmo vocês sofrerem. Eu escrevi porque não me acostumo com a ideia. A morte de um ser humano machuca porque nos alerta de nossa precariedade (nós que no fundo sonhamos com divindades), mas a morte de alguém novo, com sonhos, com ideais, de alguém que vivia tão tranquilamente, tão modestamente, sem riscos, sem aventuras ou loucuras... isso me dói muito mais ainda.
ResponderExcluirE pensar que ele morreu daquilo que escapei...
Fiz uma homenagem a ele, de forma simples, assim como ele vivia.
Beijos a todos vocês!
P.S.: sempre que eu postar no CONTOS DE LILY, avisarei lá qual é a última daqui.
Existem momentos inadiáveis.
ResponderExcluirCadinho RoCo
Que maneira leve de falar de algo tão pesado! Ignore a tal senhora não pensando nela. A vida te deu presente a nós que já não vivemos sem teus textos desnudos, e, ao mesmo tempo, vestidos de emoção.
ResponderExcluirBjo, querida amiga.
Mas a vida é assim mesma. Sensível. Sabemos sempre do amanhã, mas não temos certeza.
ResponderExcluirUma bela homenagem. Uma bela escrita!
Um Grande Abraço!
Eh verdade! A vida deve ser mesmo vivida como um jogo sem segundo tempo pois, a velha senhora, aquela com a foice, pode te pegar na proxima curva.
ResponderExcluirAmiga SuzAna
ResponderExcluirO seu comentário complementou seu texto, ok é obvio que estou dizendo agora, mas o que de fato vc pronuncia é uma forma de chamar a atenção sobre a vida frágil que nós humano não percebemos que temos. Tenho uma boa relação com a morte e olha já me despedi muitos amigos, de pessoa que tratavam da vida trazendo alegria a outros, não fico contente não em pensar que tão cedo não as encontrarei, mas tbm não desejava velas nas mazelas de um corpo que já não tem condições de sustentar o espírito ávido por liberdade, prefiro eu sentir uma saudade e lembrar os momentos vividos na medida do nosso melhor que nos cabia, do que pelo meu egoísmo da sua companhia a minha disposição.
Nosso corpo físico descansa, mas nossa alma esta sempre alerta então para um corpo frágil as noites são mais longas, mas sabe pq?! Pq nossa mente não para e aquele que ali esta não só sonha com a divindade mas a senti, mesmo aquele mais cético, fala com seu eu interior que é o seu divino, e neste espaço só a lugar pra 2 e a noite se torna lua crescente, a cada momento a luz aumenta.
Por isso eu não brigo com a velha da bengala, eu brigo é com a negação da vida, que é o presente como uma urgência, pra não se tornar um passado de culpa, por não ter ficado mais tempo com amiga passando um texto da peça Fim de Partida que iria apresentar logo mais a noite, e depois passar toda a noite dando risada dos errou que ninguém percebe, e se despedir com um abraço apertado, sorriso largo vestido de uma gargalhada rasgada.
Minha amada Suzana, não é conforto ter escapado e sim uma oportunidade pra vc, pois ele fez o que tinha pra fazer, cumpriu seu Darma.
Desculpe se acabei fazendo um tratado aqui, mas...
Com todo carinho que por ti tenho
Bjinhos em SolMaior
Vc não vai acreditar mas ainda depois disso tudo que escrevi faltou lhe dizer que esta foto esta linda a luz perfeita, uma natureza sob encomenda, a tua espera não?!
ResponderExcluirBjinhos Fada
Ana,
ResponderExcluirNão resisto a comentar a fotografia: primeiro fim de tarde de 2011, em Temecula, uma cidade que dá para sentir cheiro de mato, de bosta de cavalo, lotada de vinícolas. Poderia haver melhor horário para fotografar?
As crianças que correm são meus filhos. Gostou do rostinho deles? Lindinhos, não? Brincadeira...
Tenho uma foto de lá que vou postar aqui ou no CONTOS, mas preciso de um texto. As videiras foram amarradas em forma de cruz. Um show! Um campo de cruzes, quando você olha, mas na realidade, vinhas.
Beijos a todos, saudades, não ando aparecendo porque estou doente (gripe/garganta).
Booooooom Dia
ResponderExcluirMas então menina já fique a imaginar uma foto aérea logo em seguida em curva a 90graus a terra com uma grande angular, por estas videiras, hum duas boas sensações ver as coisas de cima pra baixo como um pássaro e ver a pintura abstrata do planeta, bem que vc podia...
Mais adiante percebera por qual razão estou vendo o mundo por este ângulo, hahahaha.
Bem nina, agora vamos tratar de falar, por pra fora o que esta presa ai nesta garganta, pra sair deste repouso, pois gripe não é doença, até pq a luta continua... e o tatame não espera.
Bjinhos Linda Fada.
[...]
ResponderExcluirtocar, sentir, poder falar ouvir...
Há pessoas que se eternizam, há aqueles
que embora existam pouco mais de 6 bilhões de almas no mundo, jamais existirá alguém como um dos nossos.
Gostaria de poder abraçá-la e dizer... de silênciar e chorar junto!
Beijo grande!
Hoje eu estou sensível demais as coisas. Olhei a minha volta há pouco e vi pequenas sombras. Acompanhei a despedida do dia e das horas. Estou em mim (um pouco triste) essa senhora pra mim tem muitos sons e tons e ela sempre se aproxima para um bate papo. Se demora e sempre me diz "você não". Ela já levou muitos que conheci. Lembro de um amigo de faculdade (um dos poucos) que conseguiu espaço a minha volta. Alguém me ligou as cinco horas e disse "é só pra avisar que o Beto morreu". Eu ouvi e fui pra faculdade no dia seguinte pra encontrá-lo e conversar sobre poesia. Claro que ele não estava mais lá.
ResponderExcluirEnfim, continuando dialogando com ela, uma hora dessas eu sei que ela se cansa e muda o discurso. bacio
Queridos,
ResponderExcluirPor motivo de força maior, voltarei apenas no domingo, 13.
E então darei um voo saudoso na casa de cada um.
Beijos!
Tem uma melodia que sei que irás gostar lá no blog. Passas por mim...
ResponderExcluirBjo e até domingo, amiga Suzana.
Oi Suzana...
ResponderExcluirLindo texto, embora eu não consiga lidar com a morte pois já perdi pessoas que amava muito, inclusive um filho, assim este tema sempre me pega de surpresa e me avisa que eu ainda não estou preparada para falar.Mas acho também que não dá pra fugir a minha toda.As imagens como sempre um show, parece uma pintura, sabe daquelas que paramos na frente para admirar.
Beijos e fiz um comentário de brincadeirinha lá no lily, espero que não fique triste.
Néia,
ResponderExcluirDoeu aqui em mim. Moça, eu não sei o que é isso, perder um filho (perdi dois na barriga e já foi demais), enterrá-lo (e há quem não possa enterrar) e depois viver com isso. Sinto mal aqui, dá vontade de chorar sem ter perdido. Tenho neurose com isso. Sinto muito por você, sinto muito.
Eu ri do teu comentário no CONTOS. Adorei! Bom, a moça teve o piloto... está reclamando do quê? Eu não tiro a tua razão mesmo em forma de brincadeira.
Um abraço, um beijo na alma!
Suzana
É... a Véia da Foice costuma dar seus avisos. Minha mãe costuma ter esses sonhos. É tiro e queda! Já proibi ela de sonhar comigo, cruz-credo!!
ResponderExcluirMas teu texto tá ao mesmo tempo íntimo e explícito; uma coisa que vem do âmago e que você soube explanar muito bem.
Ah, ela, a Véia, é verdadeiramente democrática e progressista: não poupa este ou aquele e ceifa o terreno para a safra futura.
Em março escreverei algo sobre ese tema. Te dou o toque quando postar.
Xêro imortal!