fotografia, por SCG |
segunda-feira, 22 de novembro de 2010
CARTA À MINHA AVÓ
O vento que bate na minha cara é sempre mais frio. O cheiro que sinto é de maresia, não de Caratinga. Eu enfio a cara para fora da janela do meu quarto e sinto estar vendo a avenida onde você morava. Toda noite em que consigo parar um pouco. Não é sempre. Às vezes, não tenho tempo, fecho a janela num tapa e puxo as cortinas. Mas há noites em que o vento gelado marítimo puxa minha cara para fora. E então penso estar diante da avenida, onde eu, pendurada na janela, costumava olhar por horas e horas, madrugada adentro. Pergunto-me se há algo que me faz recordar. Nada. Nada. Eu nem moro de frente para a avenida - quatro pistas a mais que a outra, a do passado, moro de lado para ela. Mas, dentro da visão que tenho, do enquadrinhamento que faço, vejo tudo o que eu via antes, durante longos anos. Morei em vários endereços no Brasil, inclusive aqui, e nunca tive uma impressão assim, tão forte. Penso se é a cor da casa da esquina, se é o burburinho de vozes ao longe - vozes ao longe chegam iguais em qualquer idioma, se é o céu que é o mesmo ou a Lua. Mas não é. É algo mais. Os letreiros em língua inglesa provam-me que não estou lá. É algo que vem no vento. Feito o cheiro da roupa de cama quando estendo o lençol limpo para dormir. O cheiro que vem lembra você.
Lembra-se, vó, de quando varávamos a madrugada jogando burro deitado ou burro em pé? Pois, peço-lhe, venha jogar comigo, venha me fazer rir por ter ganhado o baralho todo. A realidade do ganhar que significava ter perdido e muito. Sem o mesmo naipe da carta na mesa, devia-se comprar cartas. As em pé, inclinadas em "v" invertido, as piores. Mão firme não adiantava e a vontade de rir era imperiosa, fazendo a pilha desmoronar. Cartas, tantas cartas, esparramadas na mesa, esperando o burro pegá-las.
Vem, vó. Convida-me para assistir à televisão e eu que tanto odeio, irei. Assistirei aos teus programas favoritos e também Miss Brasil e Miss Universo. Permanecerei fiel a teu lado, até a cabeça tombar para o lado e eu babar, até percebemos num susto que acabou. Lembra-se de quando você não queria dormir e só havia quatro ou cinco canais de televisão? A tela no aparelho avisava fim das transmissões.
Vem, vó. Vem me apertar. Esprema-me feito aqueles saquinhos de confeitar bolo. Esprema-me para que de mim saia creme ornamentado. Quero ornamentar os bolos dos meus eleitos, e, quem sabe, o meu próprio. Já não sou mais aquela menina que não sabia tocar outro corpo. Nas aulas de jiu jitsu, estou aprendendo a tocar e a ser tocada. A usar e a ser usada. A apertar com força, sentir o corpo estranho, sabendo que só se aprende, só se aprende. E, aquele que poderia ganhar, na realidade, ali, se põe a perder, igual no jogo, quanto mais cartas, pior. Ele se deixa usar, sem pensar que está perdendo. Ele, desta forma, ganha muito mais, aprende, aprimora enquanto se faz menos, passivo. E eu me permito e permito ao outro, que me toca, me prende feito uma naja, uma jiboia, e eu aprendo a ser menos, mas ser precisa, constante e calma.
Eu me deito à noite em minha cama. Olho para o teto, vejo imagens que lá se refletem, saídas do fundo ocular. Não gosto delas, visões que molham meus olhos. Viro a cabeça para a direita, tento alcançar novos horizontes, não me satisfaço, passo rápido para o lado esquerdo, olho e desisto. Fecho então as órbitas e fixo por dentro. Tento alcançar a barca parada à beira-mar.
Deriva à beira-mar, nossas cartas de baralho, nossos sonhos findos. Disseram-me, "Estamos todos mortos", e eu não acreditei, pensei apenas em burro deitado, burro em pé, um jogo, um tempo compartilhado.
Disseram-me também, "Meu medo é me tornar clichê, o cara que comprou um sofá e volta do trabalho para deitar nele, vê o mesmo canal da televisão, dá comida para o mesmo peixe, que por mais que morra é trocado por outro e sempre vai parecer o mesmo peixe... meu medo é passar a vida deitado no mesmo sofá, aquele do primeiro salário". Mas, vó, sabe o que ando vendo? Que as pessoas têm mais medo que eu. Eu, que tanto escrevi sobre medo. Eu, que tanto sei disso, conheço os sintomas, conheço o mal, todos os arrependimentos. Descobri, vó, que a fé é o momento preciso entre o fato e o aceite. É o segundo que antecede o primeiro beijo na boca, é a mala feita para não mais regressar, é quando você deixa teu país e embarca para o desconhecido, é o instante dentro do avião, quando ele decola e você já não pode mais recuar; é o instante em que a caixa em papel colorido lhe chega às mãos e você decide se a abre ou não, puxa o laço ou não, sacode para ver o que é ou não, rasga as folhas afoitamente ou não, ou nem rasga, deixa o presente de lado e finge que jamais o ganhou. A fé desconhece o medo. O medo não sabe o que é fé. E, então, por medo, você haverá de comprar um peixe após outro, até o fim da sua vida. Sequer passará por um cachorrinho ou um gato de unhas afiadas, pois dá trabalho vivenciar o novo e você já está bastante acostumado com o cheiro de sofá velho.
Disseram-me também, "Não é boa a sensação de ser descartado". Mas eu vi nesta vida gente colecionar canetas Bic sem tinta, findas, só por dó de descartá-las num voo leve e direto ao lixo. Eu vi essa mesma gente se agasalhando em jaquetas de caneta Bic, de tanto que as acumulou, mas que descartou o melhor amigo, a melhor confidente, da mesma maneira com que eu descartava as minhas canetas: num arremesso silencioso, certeiro, direto à lixeira, sem dor ou ais.
Vó, escrevi essa carta porque você está mais viva que eu. Será que estou morta, morri no jogo? Guardo comigo todas as cartas. E se você viesse e na calada da noite roubasse as minhas cartas, meu baralho completo?
Não. Decididamente não. Não estou morta. Já morri várias vezes e renasci outras tantas e estou aqui, permaneço. Sei que estou viva porque já segurei a felicidade entre as mãos, já senti meu coração desbaratinado dentro do peito. Igual a todos, eu também não sabia o que fazer com ela, eu nunca soube. Mas mesmo assim eu a agarrei. O medo matou a fé, o medo desviou alguns caminhos, mas eu acabei por dominá-lo, numa luta onde eu ainda não sabia que o segredo era prender e apertar devagar, sem pressa. Mas, agora sei. E ficou para mim a certeza, qualquer coisa que eu venha a pegar, que eu a segure com tudo, mãos, pernas, braços e equilíbrio, aquele mesmo que me faltava ao tirar a carta do baralho em pé.
Sei que pode dar tudo errado, posso pegar a condução contrária, pensar que vi, mas não vi, posso desenhar no mapa um percurso jamais possível de se concretizar, mas aprendi, vó, que preciso também aprender a abarcar as cartas, rir bastante e acreditar que o jogo não continua, mas a vida permanece.
Suzana C. Guimarães