segunda-feira, 4 de outubro de 2010

EXORCISMO



fotografia, por SCG

Você começou a ir embora quando o carro, aquele enorme carro, parou rente à calçada. Eu vi o prédio cinza, a grama perfeita, verde, as malas sendo enfileiradas por cima dela, depois arrastadas para dentro. Ali, foi o começo do fim. Entrei no prédio, a cabeça estourando de dor, desespero só de lembrar dos gritos da menina por horas e horas dentro daqueles dois aviões. Dezessete meses, dezessete horas.

Você começou a ir embora quando eu cheirei um ar diferente, marítimo, absorvi o silêncio profundo do mosteiro, quando senti um vento frio, fino, rasgante, encostando em mim, dando boas-vindas. Nada, nada para mim, já conhecido. 


Você começou a ir embora quando eu passei a amanhecer em calmas manhãs, acomodar-me em noites frias, vendo Sol que aborda bem no meio do inesperado das horas. Naquele dia cinza em que vi o "pier", e, de botas e casaco, enfiei meus pés nas areias em poças d`águas só para chegar bem próximo dele e acreditar de verdade que ele estava ali, parado, esperando-me.

Hoje, eu encosto minha cabeça no volante do carro. Acabo de entrar na terceira garagem desde aquele dia em que o carro parou rente à calçada. Depois daquele dia, as areias do deserto fizeram de mim o que bem entenderam e eu não ofereci resistência. Metamorfoseei-me em sopros de decisões. 


Hoje, eu encosto a cabeça, esperando a música do rádio parar de tocar. Música linda, já ouvida num tempo qualquer, mas que não me traz recordação alguma. Fecho os olhos e me sinto: pernas, braços, cabeça, massa. E eu então me despeço de você.

Eu lhe digo adeus. A você que habitou o mesmo corpo que eu. A você que me fez deixar bastante de mim para trás, e, nesta saída, fui obrigada a pisar folhas soltas, pétalas, botões amados que deixei cair, naquela pressa e urgência de largar o que me incomodava.

Refiz o trajeto passado, mais de 40 anos em poucos minutos, no pouco que faltava para a música acabar. Segurei o volante do carro, arranquei você de mim mesma, sem gentilezas, mas sem luta. Expulsei tudo o que restava de você, parei de gostar da lembrança. Parei de pensar que você era a escolha mais certa. Passei naquelas praças, ruas, vales, vi toda aquela gente. Vi você lá. Vi tudo, empurrei você para fora, enquanto as lágrimas escorriam. Não a matei. É preciso que você viva, para que eu me lembre de que todos nós podemos nos fazer substituíveis.


Você começou a ir embora naquele dia das malas enfileiradas. Você lutou por permanecer, mas enfim perdeu. Nós não somos mais a mesma pessoa.

A música parou. Enxuguei o rosto. Desci do carro. Virei as costas e fui embora sem olhar você parada, lá atrás, com um pequeno prato na mão, um prato de alumínio, amassado, a pedir migalhas.

Deixei você. Poderia até trocar de nome.

                                                                 por Suzana Guimarães

21 comentários:

  1. É, isso sim que é um definitivo adeus!
    Só que os bons momentos ficam guardados para sempre.
    Abraço

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  2. sem duvida o termino começa bem antes da despedida...
    beijo!

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  3. Realmente, a despedida já estava feita, concretizada, mesmo antes do Adeus.

    E como é ruim, pedir migalhas!!

    Suuu, vim deixar um abraço, daqueles, de costelas quebradas. E de novo, vamos pro PS hehehehehe!!

    Beijooooooo, amiga do meu coração!!!!

    Tem uma coisa do Caio, que dedico a você:



    "Na minha memória - tão congestionada - e no meu coração - tão cheio de marcas e poços - você ocupa um dos lugares mais bonitos".

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  4. Denso, introspectivo, comovente...

    Não existe decisão mais difícil do que o abandono do eu, companheiro assimilado de tantos anos, e assumir o novo ser que surge em toda a sua plenitude. Mas é uma escolha.
    E nessa escolha, se deixam para trás flores ainda em botão, mas que por opção não pode ou não quer mais ver florescer. Mas se descobrem novos jardins, novas e variadas flores em botão, que formam um novo cenário, mais gratificante talvez, talvez mais sofrido, mas escolhido com lucidez. Lucidez convicta da certeza de que para ser novo por completo, não se deve, ou pode, deixar ancoras, amarras, por mais que seja difícil cortar o cordão que as prende. A tranqüilidade se dá, quando as lembranças, ainda presentes, se tornam um retrato na moldura sobre o móvel da sala de estar, que quando apreciadas, vem dissociadas do desejo do retorno ao antigo lar. A CI continua a mesma, com o mesmo retrato, mudou o conteúdo.
    Eita!Sai de mim coisa ruim!!!!!Saravá!


    bjão

    ps. cometi um erro de portugues tão grosseiro que tive de deletar e postar de novo....rs

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  5. Nossa...que linda visita suzana..
    Agora a timidez do personagem caipira passou pra mim..haha

    super bjo/-\-\-\-\

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  6. Eita, como disse o Lufe, que a muierada toda tá exorcisando os capetas! A Anga também tá no mesmo choco.

    Nessas horas eu chego e saio pisando bem mansinho, que se não sobra!

    Mas o texto é finíssimo, Su. Você nunca erra o tiro, peste!

    Beijo

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  7. Suzana,

    Nem sei se você gosta de Maria Bethânia, mas ganhei o último CD dela - Tua - de presente há alguns meses e só agora o descobri. Estava envolvida com outras músicas e o deixei meio guardado. Ultimamente, não há espaço pra mais nada no som do carro nem de casa e a música mais maravilhosa, pra mim, se chama Você perdeu, que se parece muito com essa delícia de texto que você escreveu: "Já dobrei aquela esquina, onde você me perdeu. Foi você quem se perdeu de mim. Foi você quem se perdeu. Foi você quem perdeu".

    Fiquei pensando, ao ler seu texto - algumas vezes, para senti-lo - que, se por um lado os términos, as despedidas amorosas, deixam marcas tão fortes que acabam inspirando uma infinidade de histórias, poemas e músicas, os começos, então...

    Lembra como é bom se interessar por alguém? Como é arrebatador se sentir, o mínimo que seja, atraído por alguém? Ainda que não se concretize.
    A expectativa de algum contato, de ouvir falar, de ouvir a voz, de algum sinal...
    O coração apertado, a espera, a imaginação correndo solta...

    A possibilidade de recomeçar e de viver enquanto dure...

    Beijos!

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  8. "...Nós não somos mais a mesma pessoa..."

    Como isso é verdade! Quanto de nós ficou para trás e o quanto de nós ainda encontraremos pela frente..

    Amo sua forma íntegra de escrever, tem muito de mim no viés de tua escrita..

    Um texto de beleza incontestável! Uma música para os meus olhos..

    Bjbj!

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  9. Ei querida! O bom de poder se despedir, é que podemos ser novamente leve para dar boas vindas ao novo que chega.

    Lindíssimo texto, eternizando a lembrança daquilo que não volta mais.

    Você é uma linda!

    Bjs!

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  10. Su,

    Vc esta afinadíssima, mais do que nunca.
    Nada fácil esse adeus de quem fomos, de coisas e manias que acumulamos.
    Por outro lado, a mutação é linda e necessária, pq andamos sempre em frente, pra algum lugar mesmo que desconhecido. A vida não é estática e a metamorfóse é o início. A borboleta a síntese

    Bjocas gigantes

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  11. Tempo de encontrar mais flores no caminho de asfalto.

    BeijooO*

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  12. FANTÁSTICOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO!!!

    sabe Suzana...sei que um dia vamos ter a oportunidade de conversarmos e nos conhecermos mais...sinto que temos histórias muito parecidas de vida!

    Maravilhoso seu texto...a mim...coube como uma luva...perfeito....palavras bem colocadas...

    Estou aqui agora em silêncio, uma lágrima escorre em meus olhos, respiro fundo e agradeço a Deus todos os dias por minha coragem ...SOU LIVRE...e estou LIVRE...e voc~e também!!!

    beijos em seu coração!

    Bia...MAIA...apenas MAIA...(ufa!)...100% MAIA!

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  13. Algo ficou para trás. Algo que era nosso. Doeu (dói sempre) mas agora a estrada é mais larga. Logo, com mais incógnitas, inquietações, desassossegos. Mas é uma estrada para trilhar, até que outra parte de nós fique para trás. E de novo a estrada...
    (Suzana, a sua prosa é um abano!)

    Beijo :)

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  14. Nossa que texto forte!! me deixou pensando por muito tempo, meio assim sem saber o que dizer...adorei!

    A despedida que se renova a cada dia mas que um dia chegou ao fim ao som da musica, todos os detalhes dessa reconstrução...enfim, perfeito! Parabéns!

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  15. Bela despedida escrita. *---*



    ''Avesso'' é o novo texto que acabei de postar no meu blog --> www.iandeee.blogspot.com Visita e comenta por lá. abraços.

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  16. Suzana,

    vi seu rostinho lá no "Eucaliptos" e corri prá cá... vim conhecer seu blog...

    estou impressionada... que lindo o que faz com as palavras, que maneira mágica de despedir-se do que já foi...

    cabem em mim esses pesares...
    cabem em todos nós.

    você é incrível !

    amei.

    beijo

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  17. Suzana,

    Que espetáculo....
    Me fez lembrar de tantas coisas....
    Brilhante, simplesmente brilhante!

    Um beijinhooooo

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  18. Oi Suzana!! Tudo bem?

    Que texto! Daqueles que você lê, numa "tacada" só, e para no final, para respirar, profundamente.

    Muito bom! Parabéns!

    Grande abraço!

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  19. Sinto-me honrado pelas belas palavras que me deixas-te. Gostei muito do seu texto, remete-nos a uma viagem temporal de onde recordamos sentimentos puros e ingênuos que o tempo nos rouba, o culto à beleza trocado pela aquisição da experiência, o saber admirar o interior das pessoas. Um novo ângulo da observação.

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  20. e a gente sempre sabe quando o outro vai embora.

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  21. Tenho múltiplas personas comigo. Elas estão ainda todas aqui. As que já se aposentaram, repousam em asilos, em féretros eternos ou no museu de minhas raridades. Outras vivem à solta, perambulando minhas vias internas. E, sabe de uma coisa, Suzana? Elas se empurram, e até a mim mesma, cabecinhas esticadas, pés em suas pontas erguidos, pois disputam a leitura dessa preciosidade que você nos oferece. Percebi nessas minhas inquilinas, pelo minha ultra análise, um certo tipo de empatia, identificação intojetiva, ou algo assim, com a leitura. Ah, essas meninas são tão levadas... se me importunarem demais, lanço-as no divã: malévolo castigo!

    ;*

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