segunda-feira, 11 de outubro de 2010
CONTRA FATOS NÃO HÁ ARGUMENTOS
Suzana C. Guimarães
Eu ainda residia no Brasil. Vivia correndo de um lado para o outro, tentando resolver todas as questões antes de partir para a minha nova vida em outro país. Meu carro nunca foi um exemplo de limpeza, tenho crianças e, naquela época, carregava outras também. Não dá para mantê-lo limpo, mas sempre estou a catar as garrafas vazias, os papéis de balas e as pipocas, pedaços de comida, latas de refrigerante. O melado, o farelo, a areia, o suco derramado, não limpo sempre.
Um dia, sozinha dentro do meu Ford KA, a minha baratinha eficiente, aguardando por uma pessoa que pegaria carona comigo, vi, ou melhor, revi, no chão, por cima do tapete, num canto em frente à cadeira do carona, uma tira de papel azul celeste, cortada em linha reta, limpa, lisa, um retângulo, pouco menor que aqueles papéis que vêm dentro do biscoito da sorte.
Aquele papel azul estava lá há dias e eu nunca me prontificava a agachar e pegá-lo, enfiá-lo dentro da bolsa para depois lançá-lo ao lixo. Naquele dia, eu estava com tempo. Estendi o corpo e o peguei. Havia uma frase escrita, datilografada, na parte do papel que ficou escondida, "faça oferenda a Iemanjá".
A única vez que fiz festa para a Rainha do Mar foi na virada de 2001 para 2002, na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro. Festa inesquecível, a mais linda que vi em toda a minha vida. Entreguei palmas, pulei ondinhas, bebi champanhe, vestida de branco, feito a maioria ali na areia da praia.
Naquele dia, dentro do meu carro, entendi: eu estava deixando a minha cidade, a minha singela terra rodeada de montanhas, e indo morar na beira do Pacífico. Eu deveria então, ao chegar no meu destino, ofertar flores à Nossa Senhora, Iemanjá, a Rainha do Mar. O papel, eu não joguei fora, deve estar dentro de algum livro ou numa daquelas caixas de papelão que deixei para trás. Não joguei fora também o respeito que sempre tive por mensagens da vida para mim, guardei na memória a promessa de cumprir o pedido. Sem questionar, sem duvidar, sem pedir respostas. Aprendi no curso de Direito que fatos são fatos e contra eles não há argumentos. Pouco me importava, no momento da promessa, a minha religião, minha crença, minhas práticas e o meu desconhecimento sobre várias questões, inclusive sobre o culto à Rainha dos Mares.
O tempo passou, engoli os dois ou três últimos meses em Belo Horizonte, como se engole cachaça brava, fecha os olhos, toma atitude e jorra tudo goela abaixo de uma vezada só. Vim, vi o Pacífico no terceiro dia, já morando em meu novo lar (fiquei três dias sem sair de casa, desfazendo malas e refazendo-me do adeus), mergulhei meu corpo quente em suas águas geladas e não cumpri a promessa, mas também dela não me esqueci. Feito fome, sede, escovar dentes, tomar banho, eu me lembrava todos os dias. Mas nada fazia porque eu não sabia como lançar as flores.
No verão passado, fui visitar uma amiga num acampamento. Comprei um buquê de flor, fiquei com ele no carro, amolecendo todo, procurando um local, no caminho até à cidade onde ela estava, um pedaço de mar, despovoado, livre, sossegado, sem pedras, sem agitação, para ofertar meu agrado. Quando as flores já estavam quase desfalecidas, segui direto para o acampamento, parei de girar em círculos, e as entreguei para a minha amiga. Enfeitou a mesa de refeições estendida na varanda da moradia provisória.
Rodei a minha cidade e descobri que verão aqui dura apenas três meses e isso faz com que haja pessoas em todos os cantos, praias, "piers", inclusive à noite. Decidi que não passaria de um determinado domingo, comprei flores, procurei a praia mais deserta (não poderia chegar na madrugada, após determinado horário é proibido ficar nas praias ou entrar no mar) e fui, decidida a cumprir minha promessa, visse quem quisesse ver, se importasse quem quisesse se importar. Encontrei apenas algumas pessoas, sentadas naquelas cadeiras de metal, sentadas de frente para um mar escuro. Com certeza, nem ali presentes estavam, viajavam. Joguei as flores e metade voltou. Considerei mal dado o presente, mas me dei por vencida.
Um dia, caminhando pela cidade, a pé, encontrei a Santa, a poucas quadras da minha casa. Lá estava ela, majestosa, branca, na calçada de uma avenida movimentada, dentro de uma enorme concha, rodeada de vasos de plantas, flores em jarros, frutas, moedas e incensos. De frente para o mar, num gramado bem tratado, verde, um oásis no deserto. Parei em frente a ela, abri a boca e custei a fechá-la. Lá estava Iemanjá, recebendo oferendas, dando alívio a qualquer passante. Um lugar de orações, sem grades, sem portões, no tempo, aberto, respeitado, principalmente respeitado. Nem uma flor pisada, um jarro derramado ou quebrado. Um lugar que o espera. Dois tambores enormes com constante água limpa, duas dezenas de jarros de vidro, e enormes colheres para enchê-los, escondidos atrás da grande concha.
Eu queria rezar de costas para ela, de frente para o mar, mas não sou uma pessoa que gosta de causar estranheza (já me basta a oculta que carrego), eu queria assim fazer porque, para mim, tudo ali é apenas um símbolo, um belo significado, mas ela mora no mar, no ar, ela voa, ela mergulha, nada. Ela não se encontra ali tão parada e quieta, ela inclusive sai por aí deixando bilhetes nos carros das pessoas.
Passei então a levar um buquê de rosas, um punhado de flores ou um vaso, orquídeas, palmas, margaridas ou crisântemos, um por semana.
Até que parei, há quatro meses. Quando me lembro de que passaram semanas, conto-as nos dedos, compro os presentes que não foram comprados na data certa e levo-os todos de uma vez só.
Hoje, eu deveria ter comprado seis agrados. Comprei dois, comprei "lilys". Eles estavam na entrada do supermercado, enrolados em papel transparente, com o nome - tão meu conhecido agora - estampado em preto: "lily". Decidi entregar os seis, não de uma só vez, mas um por dia, mas comprei dois buquês porque não queria ver a Lily sozinha.
O curso de Direito também me ensinou: fatos são analisados da forma como se apresentam. Pois vou agora apresentar um fato.
Caminhei quinze minutos para ir e quinze para voltar. Na ida, parei no semáforo próximo à Santa e esperei o momento de atravessar a pista de pedestres. Do outro lado, havia uma senhora oriental, uma moça, igual a ela, empurrando um carrinho de bebê e um rapaz. Os três estavam juntos, também esperavam o sinal verde. Só havia nós. Passamos lado a lado ao chegarmos no meio da pista de rolamento, estávamos então num mesmo passo. Fui carregando os "lilys" para Iemanjá, eles seguiram em direção à praia, ao mar. Fiz tudo no meu ritmo normal, não tinha pressa. Enquanto os olhos ardiam por detrás das lentes escuras, peguei um jarro grande, enchi de água, depositei-o aos pés de Nossa Senhora, afastei-me um pouco e falei dois textos mal redigidos para ela. Expliquei a razão de eu ter me esquecido das oferendas semanais. Enxuguei as lágrimas, poucas, caminhei de volta para a faixa de pedestres. Do outro lado, havia uma senhora oriental, uma moça, igual a ela, empurrando um carrinho de bebê e um rapaz. Os três estavam juntos, também esperavam o sinal verde. Só havia nós. Passamos lado a lado ao chegarmos no meio da pista de rolamento, estávamos então num mesmo passo.
19 comentários:
A caixa para comentários está novamente aberta. Contudo, agora, "os comentários passam por um sistema de moderação. Não serão aprovados os comentários:
- não relacionados ao tema do post;
- com pedidos de parceria;
- com propagandas (spam);
- com link para divulgar seu blog;
- com palavrões ou ofensas a pessoas e marcas;"
- com luzinhas e pequenos corações saltitantes porque pesam a página.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
A casa grande na esquina é um mosteiro budista. Antigamente, era um convento de freiras. Os monges decidiram preservar o local.
ResponderExcluirSuzana,
ResponderExcluirQue beleza de texto
vivido, sentido
as coisas ao seu tempo
ao acaso
templo tranquilo de oração
fé na vida
encontro transcedental.
bjos
Pra resumir:
ResponderExcluirContra fatos não há argumentos.
Fiz sempre disso, minha lei!
Salveeeeeeeeee a Rainha do mar.
Odoiá, minha mãe!
Beijooooooooooooo amadaaaaaaa!!!
Olha só.. notou minha ausencia, isso é sensacional rsrs *-* Minha vida ta uma confusao Suzana, vou te falar viu... Nao digo fisicamente falando, e sim emocionalmente sabe?! Estou vendo uma força em mim que eu nao imaginava ter... E por ai como estao as coisas querida? beijo grande! =)
ResponderExcluirSou na umbanda, filha de Iemanjá com Oxossi.
ResponderExcluirEla a rainha do mar e ele o rei das matas.
Desde sempre eu sei que a minha cidade é o Rio de janeiro. Moro aqui há 30 anos.
Também sou mineira, de Muriaé e morei cinco anos em Juiz de Fora e depois em Niterói.
O meu coração sempre foi do Rio de Janeiro. Foi à cidade que me escolheu e me acolheu. Muitas vezes quando estou nadando no mar, na praia de Ipanema, lá de dentro vejo as montanhas que contornam a orla e sinto a força da natureza e a presença dessas forças na minha vida.
Linda a sua história. Existe um hino, de uma das muitas religiões que pratiquei que tem a seguinte estrofe:
“Iemanjá, Iemanjá leva pras ondas do mar,
Todo mal que aqui está.
Leva pras ondas do mar.”
É um hino de força pras filhas de Iemanjá. É pra você também.
Beijo
Denise
Mãe Santa e benevolente, nos porteja!
ResponderExcluirBlue
Visitando querida :)
ResponderExcluirMais uma linda história,
ResponderExcluirlindamente contada,
dessas que só as pessoas lindas apreendem,
percebem que as cercam,
resumem
e presenteiam aos quatro ventos.
História de sinais,
de intuição, de fé,
de todas as pequenas grandes coisas
que muito nos falam no dia a dia
e você tão bem percebe,
Suzana.
Da Rainha do Mar
- que nos lave e leve as mágoas -,
tal qual Aparecida, Padroeira nossa,
que hoje pipoca nos céus daqui.
A ambas rogo bênçãos a Suzana e Lily,
de amor, paz, saúde, felicidade e
todo o sucesso do mundo!
Beijos!
E como foi gostoso despertar neste Dia da Criança aqui no Brasil e encontrar brincadeiras poéticas de Lily/Suzana no meu quintal:
ResponderExcluir"Tenho montanhas no coração/ nos pés muito chão de saudade
E flores na palma da mão / e nos céus da minha boca
Sonho em atravessar a rua / e secar os pés na serra ou encharcá-los nos prados.
Em hipnotizar a Lua / e vê-la rodopiar / o bastante para eu me molhar e arrepiar;
Com a vida nua e crua / para eu não mais sonhá-la.
E surpreender o Sol / antes de ele espantar a noite que te embala."
P.S.: Ontem, enquanto trabalhava - estou de plantão neste feriado - fiquei pensando no quanto é gostosa esta possibilidade de, adultas, brincarmos com as palavras, com a poesia, feito crianças, amigas de infância.
Beijos!
A criança que vive em mim - hoje, ela tem até nome, LILY - ninguém matou, nem eu.
ResponderExcluirAmiga...
ResponderExcluirObrigado, muito obrigado por tuas sempre tão gentis palavras em meu blog! Nem sei bem o que dizer... E ainda estou falta, né? Estou te devendo o livro... Mas eu prometo que mando...!
Bjs!
GK
Oi Suzana, Tudo bem?
ResponderExcluirQue bacana esse seu blog, muito interessante estou lendo vários textos aqui. Esse mesmo ta incrível. Parabéns pelo Blog e pelos Textos.
Vou continua acompanhando seus textos, pois já tou seguindo já. Segue o meu lá também, tem um trabalho bem bacana.
http://galeriadephotoos.blogspot.com/
Saudações, Abraço!
Suedivaldo
Sou baiana e nesse conto me senti em casa, em tanto 2 de fevereiro que já vivi...se bem que o conto fala da virada do ano, mas foi ao dia de iemanja que ele me remeteu.
ResponderExcluirAGRADEÇO o teu comentario e teu carinho na minha casa, viu!
Um beijo
Erikah
Linda fotografia, Suzana. Eu gostei muito da sua fé, nota dez.
ResponderExcluirBeijooO*
Uma grande e linda historia, e muito bem vivida por sinal. parabéns.
ResponderExcluirPostei um novo texto no meu blog também. chama-se ''Trajeto desenhado''.
Passa por lá: www.iandeee.blogspot.com Obrigado.
Adoro quando as pessoas vivem bem as suas histórias e, principalmente, as contam bem! Muito bom!
ResponderExcluirmuito interessante sua historia...
ResponderExcluirSuzi,
ResponderExcluirSempre me encanta teus textos tão embevecidos de tanta poesia!
(Recebi teu recado Iemanjá, a fitinha de Suzi multiplicou-se!!!)
Um abraço,Marluce
Tenho agora um silêncio só meu que fica narrando fatos, paisagens, lugares e momentos. Meu olhar está preso a uma figura misteriosa que tem muitos véus que vão caindo lentamente um a um. Preciso correr porque o silêncio já está desaparecendo e uma chama começa a arder no sabor da descoberta. Palavras se precipitam em mim. Agora preciso ouvir Elton John e ficar aqui em meu canto. É tarde, quase noite, esta se demora e eu preciso fazer minhas preces. bacio
ResponderExcluir