sábado, 14 de setembro de 2013

Talvez, amanhã, a gente se vá, como sempre foi - sobre o espelho

( Desconheço autoria da imagem)


O espelho chegou de avião, junto comigo, duas crianças, um lustre de Tiradentes, balas de caramelo, algumas camisolas, antigos livros mal lidos e pequenas xícaras pintadas à mão, dentro de meias de algodão. Pensei que ele se quebraria, até hoje, procuro por trincas... Está no meu quarto, mas já esteve na sala, ao lado da mesa onde, diante dela, sento-me todos os dias, a fim de contar histórias, para ver se este tempo passa, esta mágoa, este destempero de vida que seca a boca.

Cuidadosamente, eu o trouxe, como assim não me atrevia há anos, mas isso não significou desgaste ou preocupação. Um espelho que guarda reflexo tão límpido não macularia a minha alma, criança carente atrás de um brinquedo jamais encontrado.

Narcisa, estou, quase isso, mas não é isso. Diante dele, deixo de lado a bolsa, o chapéu, meus diamantes e as falsas pérolas. Há um tempo perdido em mim, e, diante dele, posso repassar tudo e nada. Enquanto vivo, e perambulo pelo quarto, remendando as camisolas, mordendo as balas ou simplesmente conversando com ele, esqueço, relembro, largo-o para depois voltar, aflita, em ânsia, porque, diante dele, meu reflexo se parece mantra.

Em um deslizar de troca, seduzo-o, abro dois botões da camisola, passo batom, olho-o nos olhos e vejo um mundo sério, um córrego, uma fuga, uma paz nunca alcançada. Ele sou eu sem contenção; eu, sou ele, contida. Sinto aroma de hortaliça, hortelã, eis meu batom... Nesse deslizar de troca, ele fala pelos poros e eu finjo não ver, ele parece querer se esconder, parece querer me ter, parece querer me ser. 

Ele pensa que falo dele, mas, não, nem de mim, falo, apenas de nós. E falo e falo e falo. Calo-me para dormir, pois, dormindo, continuarei a lhe falar. 

A ele, venho, porque vim, só por isso e isso é um mundo, quando esbarrávamos por aí, sem percebermos que nunca houve fronteiras, apenas a falta do reflexo, do lago. 

Confesso, não sei onde deixá-lo, definitivamente, penso até em não mais vê-lo, ou em fingir não tê-lo, ou continuar nesta crença de que, diante dele, posso estender os braços e tocá-lo, sem sustos.

Penso nas horas, em noite calma, penso em tudo que falei para ele e ele para mim; ele não mente. Ele olha-me com medo, com ânsias de taquicardia, sem saber se sei mesmo quem ele é, ou, se sei mesmo quem sou eu. 

Quando ele realmente chegou para mim? Incalculável contagem e sapiência. 

Indizível, meu espelho, digo-lhe, é o lamento. 



Por Suzana Guimarães