quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

CARTA PARA O MEU PAI ( # II )

Suzana Guimarães - arquivo pessoal
Los Angeles, 7 de fevereiro de 2013.

Pouco posso lhe dizer agora, talvez sobre o tempo, talvez sobre o cachorro que dorme debaixo dos seus pés. Eu queria lhe contar os últimos acontecimentos. Os de hoje, principalmente esses, e tenho certeza de que você diria, "Você é uma heroína!". Tenho certeza de que nós mudamos, você e eu, eu o vejo melhor, você me reconheceu. Somos amigos, pacíficos, renascidos. 

Tenho dirigido tanto, estou dirigindo, você que me disse que no seu carro eu não tocaria, mas que depois liberou e até me deu algumas aulas, perdidos nós nas ruas estreitas do Prado... e ríamos porque o carro parecia ser um avião de tanto que eu não conseguia dominá-lo. Pois é, estou avistando o porto de Los Angeles que se comunica com o de Long Beach... é enorme, pai, o mundo passa por aqui, e, sem carro, estou sem mãos e pés. Tudo é longe, demorado, e eu sou aquela que você nunca imaginou tão distante. E você sabe, até hoje sabe, no profundo de seus silêncios, na sua mudez, na sua total falta de assuntos, sabe que eu não acompanhei ninguém, sou aquela que empurra, aponta, mostra o caminho.

Ando correndo mais que você, repetindo as mesmas coisas, reclamando que tudo tem que ser explicado. Ando só. Será que você era um homem solitário? Os fortes andam por aí em plena solidão porque todo mundo pensa que força cai dos céus, gratuitamente, feito chuva, e que, nós, os guerreiros, simplesmente de nada precisamos, porque nos basta abrir a boca para ingerir as dádivas. Entendem, os fracos, que o mundo é deles, para servir às suas eternas doenças, inabilitações e descrenças. Eles se dizem à margem, mas a chuva cai para todos e eu me pergunto: por que será que essa gente não consegue se mover? Doença, acomodação... são tantos os termos, dispenso todos, pois, você e eu vimos limitações - você fingiu que nem via - mas, nós fomos, trêmulos ou não, dar a cara às águas.

Você ainda faz isso, de outra forma, mas faz porque quer. Continua decidindo por sua vida. Ah, questão de honra! Um homem igual a você não tomba fácil, mesmo assim, do jeito que está.

Você, hoje, madrugada numa minúscula cidade do interior, onde um avião nunca passou, nem navio nenhum aportou. Onde o rio transborda e assusta, ouve-se o bailado das árvores no mato, os pássaros, os ônibus que passam freiando, onde a poeira precisa de água, os cães andam sarnentos e alheios, olhos vigiam pelas frestas das janelas e um menino corre, sorrindo, mostra para a professora todo o dinheiro que ganhou vendendo garrafas vazias.

Você, hoje, é o silêncio daquelas noites, e eu sou tudo aquilo que eu ainda poderia ter lhe dito.


Por Suzana Guimarães