Foi o som que me levou para trás, em esforço mínimo...
Houve um tempo em que o sino da igreja badalava as seis horas marianas e a cidade parecia parar enquanto a voz do padre reverberava nos céus, recitando a ave-maria. Isso era todo dia. Por mais que eu estivesse desatenta, eu parava para perceber porque aquilo tudo dominava o lugar, enclausurado pelas montanhas.
Houve um tempo em que, enquanto eu escovava os dentes, podia perceber a toalha de rosto puída, o quanto ainda tinha de perfume no vidro em cima do balcão da pia, o tapete se desfazendo no chão tantas vezes admirado sem ser visto.
Houve um tempo em que eu tinha tempo para visitar as amigas da minha mãe, com ela. Uma delas era salgadeira. Quando íamos lá, o cheiro dos salgados assando nos fornos nos ganhava já no portão de entrada. Não tocávamos campainha. Percorríamos um corredor estreito, lateral aos fundos da casa, e chegávamos à uma cozinha que havia se estendido até o quintal. Tabuleiros pretos de uso empilhados nos cantos, e a mão de dona N., enrolada em panos de prato, segurando um tabuleiro, estendia-se para nós, oferecendo-nos um tira-gosto. Mas, aquilo na realidade era o gosto inteiro, era a minha festa, nunca precisei sequer ser convidada para algumas delas.
Houve um tempo em que meu pai fazia boca, nariz e olhos em abóboras e as deixava iluminadas em cima do muro da casa do vizinho. Houve um tempo em que eu cantava o Chico exaustivamente e sequer imaginava que o meu cavalo só iria falar Inglês...
Tempo, tempo, tempo... Para onde você foi? Onde está? Quando me deixou?
Eu podia desembaralhar as linhas soltas dos novelos de lã para a minha avó. Eu podia vigiar os passos de bêbados nas madrugadas, pendurada na janela do sobrado antigo; alheia a ele, ao tempo, mas em perfeita comunhão. Eu podia admirar os bichos-preguiça cochilando nas árvores da praça principal. Parava para ouvir sapo coaxar, subia ladeiras para ver a cidade de cima, enfiava meus pés nas águas escuras das enchentes.
Houve um tempo em que eu segurava a vida e nem sabia.
Por mim, o tempo poderia parar agora, mas eu não sei como se faz isso, não tenho a voz daquele padre anunciando a hora mariana, não sei mais apreciar detalhes, eu apenas finjo que olho, que toco, que engulo. Quero sair da pista de corrida, quero sorver este silêncio que me tomou de súbito.
O pássaro nada sabe de mim. Nem o tempo. Nem ninguém.
Faz calor, faz frio, eu vejo que o homem que passa ao largo de mim está cansado, eu vejo rostos deformados de esforços. As árvores tão altas e alheias balançam-se de acordo com o vento... eu deveria fazer o mesmo!
Por Suzana Guimarães