sexta-feira, 13 de maio de 2011

JÁ NÃO ME CABE

fotografia, por SCG


O ônibus corria sem freios, o motorista tinha pressa. Eu estava sentada ao lado da janela quando passou o filme, ou seria a folha de jornal lançada ao vento? Será que apenas li por sobre o ombro o livro da outra, sentada ao meu lado? O ônibus corria sem freios e de pouco eu sei. Ficou apenas a sensação vazia. Eu havia comido muito, mas a digestão de tudo foi soberana. Rápida, igual ao ritmo do ônibus. Sequer poderia eu vomitar, pôr pra fora. Só sei que vi. Vi os ensaios da minha vida e percebi que já não me cabiam. Nada mais daquilo tudo me cabia. Daquilo tudo que sonhei por longos anos. Foi tudo um equívoco. Doce erro, meiga distração.

Se a vida perguntasse para você, "Encontra-se preparado?", o que você responderia a ela? Eu prontamente diria que sim. E você? Se a vida lhe dissesse, "Aqui estou, sou a realização do teu íntimo, me lanço a você", o que você faria? Você abriria os braços e a seguraria com todas as tuas forças ou você diria que ainda não era a hora? E sentado, olhando a vista, pela janela do ônibus, voltaria a sonhar os teus antigos sonhos, gostosos sonhos, tão delicados, tão arrojados...

Eu diria sim, por impulso, impulso de fugir do medo. "Sim, pronta estou, cadê você vida?". Mas a vida não aparece em janelas de ônibus, às 3h da tarde, batendo com o dedo indicador no vidro, apontando as folhas, o filme, o livro aberto... ela não faz isso para quem aprendeu que viver vai um pouco além do ato de sonhar, que entre esse e ela, existe a coragem e todos são convidados, porém poucos cedem ao tapa. Para esses, iguais a mim, a vida não se impõe, desliza, feito areia fina pelos dedos, calmo escorrer, lento, sem pressa, feito o linho que cresce nos campos, alheio. Ela sabe que o tapa não mais me dói, ou melhor, dói, mas eu passo a mão e continuo.

A vida não se impõe a quem está alheio. Ela só pega os obstinados, os sistemáticos sonhadores, aqueles que comem sonhos, dormem sonhos, respiram sonhos, anseiam por sonhos. Só sonhos e nada mais. A vida os vê, com suas cabeças encostadas, sonolentas, nas janelas que sacodem no gingado do ônibus. Ela sabe que o romance para eles é o próprio delírio, aquele que nunca saiu dos planos. E ela ri. Ela se delicia com todo aquele sonhar, ela come aquilo todo dia.

O ônibus corria sem freios, o motorista tinha pressa. Eu esperava, olhando a vista, ela passou, a vida, séria, mostrou-me o passado, o presente, e disse que o futuro era o grão do trigo. E eu percebi de forma crua tudo que já não mais me cabia, encaixava bem apenas um dia após o outro. Não, não pense em rotina, tristeza, mundo sem graça. Dia após o outro é o máximo do viver, é a essência da existência, é o tudo, o que basta. Não me coube ter porquinhos da Índia na infância, eles corriam o tempo todo num tablado retangular, corriam para um lado e para o outro, paravam, sentavam, se coçavam e voltavam a correr. Eu via aquilo sem entender o tamanho do meu desgosto. Hoje, entendo, da mesma forma não cabe mais em mim conjugar o verbo sonhar por sonhar em ritmo constante.

A graça está também em jogar tais sonhos pela janela do ônibus que corre sem freios.

Já que eles não cabiam mais em mim e o futuro era só semente, abri a janela, dispersei aquela leitura, saí da linha de corrida dos delírios, tornei-me gente completa.

Pouco me importa até onde esse ônibus vai.


                                                                               por Suzana Guimarães