terça-feira, 8 de março de 2011

ELA


ilustração, por R.Meneghini

Eu a vejo sempre. Perambula pela casa de calcinha e camiseta. Às vezes, chega à janela, espia, puxa as cortinas e some. Às vezes, vejo-a entrando no seu carro, parado em frente ao jardim. Às vezes, não a vejo, por temporadas.

Quando não está de calcinha e camiseta, fantasia-se. Dificilmente se repete. Às vezes, pouca roupa, tecidos ásperos, duros. Noutras, muita roupa, porém, sobrepostas malhas frias, gostosas, deslizantes feito o andar dela.

Hoje, eu a reparei melhor. Ela está diferente, as fantasias escorrem pelos braços, despenduram-se, pelas pernas, alcançando o chão. Ela não se importa, e anda, num passo também diferente, ora pesado, ora leve, em descompasso. Ela empilha malas na varanda e vez ou outra puxa uma para dentro, ou duas pra fora, arrastando-as pelas rodinhas. Amontoam-se nos cantos as fantasias que se desprendem do corpo. Por cima das mesas, adornos, brilhantes, foscos, braceletes.

Às vezes, ela esquece aquilo tudo, as malas, por ordem de tamanho, os costumes, e estira-se no sofá da sala ou se encolhe, conforme o calor do dia na alma, ou o frio da falta de cobertas. Ela ouve antiga música, som recente porém, e isso a transporta para aquele canto cinza onde um piano equilibra imagens.

Às vezes, ela veste as fantasias que de si saíram, uma por cima da outra. Ao sair pela rua, atrás do seu carro, em frente ao jardim, vê que as perdeu no caminho, volta, as recolhe, joga-as no banco traseiro do carro, bate a porta e sai dirigindo, ouvindo música, lembrando-se do piano que a espera. Ela está ficando nua.

Ela se modifica dia após dia. Às vezes, as paredes da casa dela estão brancas, às vezes, vermelhas, predomina o palha. Ela sente um óleo a escorrer pela pele, isso faz com que ninguém mais a alcance e ela novamente recorda a casa do piano de músicas antigas. Nesses dias, ela não ouve música nova, ela aspira um odor antigo que lhe sobe pela boca, cheiro de merendeira da escola infantil, cheiro de bolachas, Q-Suco, leite achocolatado. Um certo perfume francês. Cheiro de vela acesa, flores em jarros. Ela consegue sentir os passos incertos, a loucura do bater de chaves em trêmulas mãos. E ela vai se modificando, dia após dia. Ela vai largando cada vez mais as fantasias, principalmente as mais pesadas, próprias para inverno rigoroso. Ela se afasta sem pedir licença, ela sequer faz barulho, gargalham atrás dela, saudades doídas, guardadas, camufladas. E ela então revê as malas, que ainda estão vazias.

Ela anda pela casa de calcinha e camiseta e sabe que, uma das malas, a menor delas, porém a mais compacta, irá vazia, feito ela. Nua, levará a mala, nua, alcançará uma vila, um sítio, uma praia, nua, fechará todas as janelas, e, nem eu, nem eu poderei vê-la.

                           
                              por Suzana Guimarães


Nota: mesma publicação, na mesma data, em Contos de Lily.

8 comentários:

  1. Olá!

    Boa noite Suh!
    Saudades...

    Por falar em saudades...
    Saudade dói né?
    É bom recordar,mas sempre q faç isso mergulho em algumas emoções que ora me alegram, ora me magoam, me entristessem e posso ver o vazio da minha alma.

    Bom é olhar e ver que apesar de tudo a gente (vc) encontrou a felicidade por nossa (sua) própria conta do nosso (seu) próprio jeito.


    Beijo grande!

    P.S. Tow apaixonada, mas nas outras 10000000 áreas da minha vida ando meio angustiada, ansiosa....
    Deus me ajude...

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  2. Su, tudo bem? Este texto que você escreveu, me deixou com saudades de vocês. A ilustração na imagem me lembra do dia que vocês partiram para loonge looonge.... Muito longe. Mesmo não ter visto a partida de vocês, esta ilustração pode me revelar todas as malas, correrias, passagens e curiosidade que passaram em suas cabeças, como deveria ser a vida lá com saudades de cá. O texto, foi escrito com um ar de saudades da farra do Carnaval do ''Brazil''. Será que no futuro, você poderá coletar todas as suas escritas e colocar em um belo livro, com ilustrações do maravilhoso artista que você tem do seu lado? Espero que sim! Abraços Mr.Chapeleiro

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  3. Mr.,

    Do futuro, nada sei, às vezes faço brincadeiras, às vezes falo sério.

    Mas, do hoje, eu sei. Você acabou de molhar meus olhos ao escrever assim tão lindo para mim. Eu sequer penso na saudade, eu não penso, me nego a lembrar. Mas, ela existe...

    Tenho saudade de buscá-los no colégio, do carro cheio, balas e pipoca (lembra dela?). Tenho saudade de quando eu, com aquela barriga enorme, gritava com vocês, dentro do carro, histérica, naquele trânsito caótico em volta do colégio, subindo a Amazonas ou passando pelo Diamond. Sinto saudade das idas ao cinema, do clube, da rua onde eu morava (tenho mania de me lembrar daquela rua, eu que morei em tantas...), tenho saudade da Boca do Forno, das coxinhas de galinha, de tomar guaraná (pararam de importar pra cá)...

    Essas são as pequenas saudades, há as grandes, mas não irei escrever sobre elas, é melhor deixá-las quietas.

    Beijinhos,

    Suzana

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  4. Lily: Ei menina oito malas dá para levar um camião de roupas, flor gostei do teu lindo texto.
    Beijos
    Santa Cruz

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  5. Lembranças vão e vêm e acabam ficando.
    Não deixe de escrever nunca, anjo.
    Nos brinde sempre com textos como esse.

    - Acho q cometi um cacófato aí em cima > [contexto]. Mas ficou um cacófato bonito, contextual! Aliás, ô palavra feia é 'cacófato'. Parece outra coisa... rsrs

    O ilustrador está cada vez mais afinado.

    Xêro!!

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  6. Leio texto, e comentarios...
    Os comentarios muitas vezes completam o texto, além de mostrar o que pensam e sentem as pessoas.
    De um blog, as vezes, aproveita-se tudo...

    Abrçs!

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